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Machado e o nosso panteão preguiçoso

 

Começamos a nos dar conta desse fenômeno desmedido, em que a celebração do centenário da morte de Machado de Assis entra nos anais da cultura brasileira. Tem magnitude ainda mal balizada do que seja, num país de tardia toma de consciência, a avaliação de seus valores, num reconhecimento nacional e já num corte canônico de gerações. Mal construímos ainda, de fato, o nosso pódio, e nele do que, nas memórias de fastos e proezas, dos destaques de onde arranque a façanha os desempenhos antológicos.


No plano do pensamento e da literatura, chegamos agora à cornucópia consagradora deste centenário. É fato nacional, de saída, que não se propaga lá fora, na mesma magnitude em que a proeza de nosso texto perde para o mundo dos Garcia Marquez, dos Sábatos, dos Fuentes ou dos Vargas Llosa. Significativamente também a irradiação do culto a Machado, vem de par com a de Guimarães Rosa, deixado à distância e talvez o autor sobre o qual continua a se interrogar a mais instigante crítica internacional, na criatividade de seu recado a atingir a própria geologia da linguagem, e a fundação simbólica da nossa realidade.


E a recepção de Machado, por outro lado, de tão unânime e magnífica, já nos faz pressentir o outro confronto, ou seja, o de Euclides, na dimensão deste mais dizer de um pensamento, em função do que revela de seu contexto e sentido.


Só começaria hoje, em função do fenômeno machadiano desses meses, a pergunta sobre o que revela como recepção de avanço crítico da consciência brasileira ou, talvez, ainda da confirmação de sua letargia no referir-se ao relevo do seu tempo. O reconhecimento, hoje, de Machado nasce tão só do aspecto performático da obra, na inteireza intransitiva na sua fatura? O que revela ela de reconhecimento coletivo, no trato genuinamente de época de um momento brasileiro? É já um caráter premonitório de efetiva descoberta da nossa realidade que agora desponta e a força desse centenário é, também, o de uma redescoberta de Machado? Ou, ao contrário, é o absoluto convencionalismo do que diz, que o levou à consagração imediata, de que só se celebra agora, tão só, a efeméride? Ou aponta já em Machado, e pelo analitismo da reflexão, uma legítima e recôndita consciência da sociedade Imperial, para além dos seus jogos de salão? Qual é, nesse aspecto e na dimensão da captura de sentido de uma época, o recado do ensaio sobre o "instinto da nacionalidade", talvez uma das dimensões neste momento, menos ressaltadas das loas e alvíssaras do centenário?


E como permanecerá a obra teatral e a poética, e a primeira etapa dos romances, diante do quatuor genial de Quincas Borba, D. Casmurro, Braz Cubas e do Conselheiro Aires? Não se peça ao bruxo a identificação com as grandes causas da ânsia nacional de sua época. Na permuta pela elegância da cabeça, do compromisso histórico, Machado de Assis foi ao extremo, como caução de eternidade, da faina sem trégua e da brecha da obra prima. De toda forma, o fenômeno sociológico desta unanimidade interroga um traço crítico desta cultura brasileira. Como subsistirá, nesta aceleração tão rápida da sua deselitização no país de Lula, e de dados irreversíveis da percepção de nossa subjetividade emergente?


Jornal do Commercio (RJ) 31/10/2008

Jornal do Commercio (RJ), 31/10/2008