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Machado e Carolina

 

AO CELEBRARMOS Machado de Assis, no centenário de sua morte, lembremos que o ano de 1904 foi todo marcado pela doença e morte de Carolina. Irmã do poeta Faustino Xavier de Novais, a jovem viera para o Brasil em 1868. Era uma bela portuguesinha, embora quatro anos mais velha do que Machado. Casados em 1869, vivem anos de crescente felicidade, que desmentem no homem as "rabugens de pessimismo" que anuncia no Brás Cubas. Ela era o centro de sua vida física e psíquica. Sem Carolina, é tênue o laço que o prende à vida, como no verso do soneto A Carolina: "E ora mortos nos deixa e separados". A epilepsia fica fora de controle, e a decadência física é rápida.


Sabe que tem pouco tempo. No Memorial de Aires, evoca Carolina e sua história pessoal na de D. Carmo e Aguiar: "Queriam-se, sempre se quiseram muito, apesar dos ciúmes que tinham um do outro, ou por isso mesmo. (...) os tempos amargos em que, ajustado o casamento, perdeu o emprego (...e) teve de procurar outro; a demora não foi grande, mas o novo lugar não lhe permitiu casar logo (...) Ora, a alma dele era de pedras soltas; a fortaleza da noiva foi o cimento e a cal que as uniram naqueles dias de crise".


Não deixa de atender, podendo, a suas obrigações: o Ministério, a correspondência, a Academia. A agonia, em agosto e setembro de 1908, é lenta, com grande sofrimento, e os amigos velam com dificuldade a sua perda.


Machado foi um homem social. A imagem de casmurro que dele ficou é inexata: um discreto, sim, mas sempre ativo na amizade e no gesto de reunião dos amigos. A generosidade é uma constante de sua vida.


Machado saiu da condição mais humilde para se tornar o maior escritor brasileiro. Sua obra consegue tocar a essência da vida carioca e ao mesmo tempo compreender o ser humano universal. Como o Conselheiro Aires, Machado observa o mundo com uma ponta de humor, com uma pitada de nostalgia, com um punhado de piedade e faz uma literatura leve de profundidade infinita.


Machado de Assis deixa o grande painel de sua obra, nesse Brasil em que nos reconhecemos como personagens da humanidade, independente de tempo ou espaço -o final do século XIX e a pequena cidade do Rio de Janeiro- e essa obra se estende em vôo alto acima do resto da literatura brasileira.


Mas, mesmo na discrição com que, dialogando com leitor, se escondia, soube ser um modelo de escritor, de intelectual, de funcionário público, de amigo e de marido -de ser humano. Que, como disse de Carolina, "Fez a nossa existência apetecida / E num recanto pôs um mundo inteiro".


Folha de S. Paulo (SP) 24/10/2008

Folha de S. Paulo (SP), 24/10/2008