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Livro de uma geração

 

Completa agora 60 anos o livro de Antônio Fraga, "Desabrigo". Quando o lancei, na editora Macunaíma, que Ernande Soares e eu fundamos, com o próprio Fraga de sócio, sabíamos que se tratava de uma novidade literária de tal atitude que o mais natural seria ela passar desapercebida. Como passou.


O Grupo Malraux, que havíamos organizado no começo de 1945, montara sua exposição de poesia, mas queríamos continuar atuando: uma editora que lançasse o livro de Fraga se nos apresentou como do que de melhor poderíamos fazer em seguida. Alugamos uma pequena sala na Rua São José, 21 - no local em que antes funcionara o Instituto Superior de Preparatórios - e, depois do necessário orçamento, mandamos os originais a uma oficina quase artesanal no Centro do Rio de Janeiro.


Fraga não tinha emprego, eu era professor e Ernande dispunha de mesada. Pagávamos os dois o aluguel do escritório, como pagamos a impressão de "Desabrigo". Lembro-me ainda de quando, entre maio e junho de 45, assim que recebi meu ordenado, fui à oficina quitar a impressão, já que o dono da impressora não queria entregar o trabalho sem antes receber a íntegra da quantia combinada. Reunimo-nos no Vermelhinho para a comemoração, afinal ali estava a história de Fraga posta em livro.


Que vem a ser "Desabrigo"? Obra-prima da ficção curta carioca, escrita em linguagem inspirada pelo submundo de que a vida noturna da Lapa seria símbolo, ficaria "Desabrigo" como o grito permanente de uma geração sacrificada. Líamos constantemente Joyce naquela época. Joyce e Kafka. Em foto da inauguração da mostra de poesia do Grupo Malraux, um exemplar de "Ulysses" aparece nas mãos de Marly Bueno, ligada ao grupo.


A admiração de Fraga por "Ulysses" era tal que ele decorava todo o final do livro, com a palavra "yes" pontuando o ritmo da narrativa, num contraponto vocabular de estranho efeito. De Kafka, lia e relia "O artista da fome", imagem da inevitável insatisfação de quem luta pela arte perfeita. Kierkegaard pode completar a trilogia dos autores que nos influenciavam naquele 1945. Quando reexamino as preocupações dos jovens que então começávamos a escrever, sinto de novo a tensa espera de que fôssemos capazes de contribuir para um entendimento maior dos caminhos de acesso possível no avanço do homem.


Dito assim, parecerá que não conversássemos de coisas banais. Como o fazíamos. Seria a guerra ou o curto/longo período da ditadura, ou fosse a juventude, vivíamos em fossas, éramos de vez em quando apanhados ou pela angústia kierkegaardiana ou pelo vazio/cheio de Kafka, e o "Desabrigo" de Antônio Fraga representava um Rio de Janeiro/Praga, ou um Rio de Janeiro/Copenhague, ou um Rio de Janeiro/Dublim - numa angústia/alegria que pode resumir o que o Rio tem de mais profundo.


Visto a mais de meio século de distância, reconheço que não erramos quanto ao "Desabrigo". Eu e todos os membros do Grupo Malraux - Ernande Soares, Luciano Maurício, Hélio Justiniano, Aladyr Custódio, Levy Meneses - sabíamos que a história de Antônio Fraga nos representava como cidade e como país, na sua busca de uma linguagem que tentasse ir além do puro idioma. No outro lado, o da miséria e da fome, também representou Fraga o seu papel de brasileiro excluído, embora fosse ele dos mais inseridos numa cultura coletiva e permanentemente válida.


Antes do fim de 1945, o próprio Antônio Fraga, com embrulhos do "Desabrigo" nas mãos, vendeu a maioria de seus exemplares na Cinelândia, entrando em bares e restaurantes com um cartaz que dizia: "Escritor no Brasil morre de fome".


Releio agora os poemas que escrevemos para o catálogo da exposição de poesia, o de Fraga, o de Luciano, o de Ernande, o de Justiniano, o de Aladyr, o meu, e torno a sentir neles o espírito daquele tempo. É curioso que, dos seis, só dois sejam de amor: o de Fraga e o de Ernande. Os outros quatro são de revolta ou de tentativa de romper o muro da comunicação.


Pretendo, como parte das lembranças dos 60 anos do Grupo Malraux e da exposição que então fizemos, editar folheto com os poemas expostos, minha introdução-manifesto e uma narrativa sucinta dos encontros no Vermelhinho, das conversas noite adentro, inclusive da noite de 29 de outubro de 1945 quando, todos juntos, às três da manhã, tentamos atravessar a Praça Paris e fomos detidos por soldados do Exército, com esta informação: "Getúlio Vargas caiu". Mudara o Natal, mudáramos nós.


"Desabrigo", de Antonio Fraga, publicado pela Prefeitura do Rio de Janeiro, tem ilustrações de Poty e capa de Regina Côrtes. Orelha de Antonio Callado.




Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 16/08/2005

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro), 16/08/2005