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Jornalismo e literatura: inquieta, mas fértil,convivência

 

O Salão Nacional do Jornalista Escritor, criado pela Associação Brasileira de Imprensa (e tocado pelo vice-presidente, o lendário Audálio Dantas), foi um êxito. Centenas de pessoas, em sua maioria estudantes universitários, compareceram no último fim de semana ao auditório do Memorial da América Latina, em São Paulo, em cujo palco sucederam-se nomes famosos no jornalismo e na literatura em nosso país: Luis Fernando Verissimo, Ruy Castro, Fernando Morais, Heródoto Barbeiro, Ricardo Kotscho, José Mindlin, Jaguar, Alberto Dines, Moacir Japiassu, Manuel Carlos Chaparro, Carlos Heitor Cony, José Nêumanne Pinto, Fernando Portela, Audálio Dantas, Mauro Santayana, Zuenir Ventura, Eric Nepomuceno, Antonio Torres, Flavio Tavares, Ziraldo, Ignácio de Loyola Brandão, José Hamilton Ribeiro, Mylton Severiano, Juca Kfouri, Caco Barcelos, Domingos Meirelles, Eliane Brum, Mino Carta... Lá estive também, e tentei não fazer feio.


O tema do encontro evoca um capítulo conturbado na história da palavra escrita: a relação entre literatura e jornalismo. O livro, tal como o conhecemos, surgiu dois séculos antes do que o jornal; não é de admirar, portanto, que a literatura tenha visto o jornalismo como coisa de arrivistas e, pior, arrivistas com vocação para o populismo, o que contrariava a imagem elitista que sempre envolveu a palavra escrita. Resultado: os escritores não poupavam os jornais. “Cada jornal, da primeira à última linha, nada mais é que um circo de horrores”, escreveu Baudelaire. Os irmãos Edmond e Jules de Goncourt (aqueles do famoso prêmio Goncourt) não deixaram por menos: “Efêmera folha de papel, o jornal é inimigo do livro, como a cortesã é inimiga da mulher decente”. E o ferino Karl Kraus: “A missão da imprensa é difundir a inteligência. E impedir que seja absorvida”.


Aos poucos, porém, a realidade foi se impondo: o jornal tinha vindo para ficar. Era uma vitória da tecnologia e a tecnologia costuma dar de 10 a zero na arrogância intelectual. Numerosos escritores começaram a se dar conta de que o jornal não representava um inimigo; pelo contrário, era uma forma de ampliar o público de leitores. Vários deles tornaram-se colaboradores da imprensa, através de um gênero que surgiu no século 19 e que logo ficou popular: o folhetim. Era uma história narrada em capítulos e publicada diariamente: o antepassado da novela de tevê. O público adorava, inclusive e principalmente aqui no Brasil. O Guarani, de José de Alencar, foi inicialmente divulgado dessa forma – é por isso que os capítulos são curtos e sempre terminam com um suspense, destinado a fazer o leitor comprar o jornal no dia seguinte.


Um outro gênero que atraiu os escritores foi a crônica. Gênero eminentemente brasileiro, a propósito; a crônica é a transposição, para a página impressa, da conversa de bar. Não é de admirar que o berço da crônica brasileira tenha sido o Rio de Janeiro. Machado de Assis era um grande cronista, como o eram João do Rio – e Rubem Braga, e Fernando Sabino, e Paulo Mendes Campos (sem falar no Verissimo). Já o novo jornalismo, que teve como um de seus expoentes Norman Mailer, há pouco falecido, diferia do jornalismo clássico porque permitia um toque muito mais pessoal do autor; mais ou menos como o ensaio, gênero consagrado no século 16 por Montaigne, mas que era só um gênero de livro.


Além da polêmica jornalismo versus literatura, outras polêmicas surgiram e motivaram muitas intervenções no encontro da ABI. Em primeiro lugar, as questões relacionadas com o avanço da tecnologia. Qual o papel da mídia eletrônica? O que significa esse novo e avassalador fenômeno, o blog? O jornalismo é o mesmo ou está mudando? De maneira geral, os participantes, cujas trajetórias formam um vasto painel da nossa cultura e da nossa história, reafirmaram valores que não podem ser considerados transitórios. Todos valorizaram o texto, a qualidade do texto, a transcendência do texto. Um recado que, para os jovens, é particularmente importante. Acima dos avanços tecnológicos, está a palavra, que não é apenas um modo de se comunicar, é um instrumento de criação. Através da palavra, o texto adquire permanência. Neste sentido, é importante lembrar que o ano de 2008 marcará um duplo centenário. De um lado, o surgimento da imprensa no Brasil, conseqüência da vinda da família real portuguesa. Em setembro, apareceu a Gazeta do Rio de Janeiro, mas pouco antes o gaúcho Hipólito José da Costa, exilado em Londres, lançara o Correio Braziliense, que, mesmo impresso fora do Brasil, era o primeiro jornal brasileiro, criado para atacar “os defeitos da administração do Brasil”, segundo seu fundador. Cem anos mais tarde, era criada a ABI. Por tudo isso, o encontro foi mais do que oportuno. E, meu palpite, acho que fará história.


Correio Braziliense (DF) 23/11/2007

Correio Braziliense (DF), 23/11/2007