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A invenção de São Paulo

 

Escritores criam países e abrem períodos da história de seu tempo, passando a representar o tipo de mudança que esse tempo exige. Diga-se que da obra de Proust surgiu uma nova França. Criada por ele? Por ele inventada? Quando nasceu, os sinais da mudança indicavam o nascimento de uma sociedade em tudo diferente da que tivera Napoleão III como chefe. Quando Jeanne-Clémente Weil se casou com Adrian Proust em setembro de 1870, a França perdia uma guerra e crescia a revolta do povo que em breve ergueria barricadas nas ruas para apressar o aparecimento de uma nova etapa na vida nacional francesa.


Marcel nasceria dez meses depois do casamento, num período nervoso e imprevisível. A obra que escreveria mais tarde pode hoje ser tida como a invenção da França tal como a entendemos nós, os do século XX em diante.


Ouso afirmar, nestes 60 anos posteriores à morte de Mário de Andrade ocorridos até hoje - data que passou despercebida - que Mário de Andrade inventou São Paulo. A cidade e o Estado que estão aí hoje, com seu permanente milagre dentro do Brasil, foram inventados por aquele escritor que desceu ao fundo de si mesmo e de sua terra e, nesse esforço, também inventou o Brasil.


A invenção de São Paulo ocorreria em "Paulicéia desvairada", ou nela teria início para se ampliar em livros tão diversos entre si como "Amar, verbo intransitivo" e "Macunaíma" e em toda a luta, em que se envolveu, para desencavar a cultura popular brasileira, num folclore redescoberto arqueologicamente. Com isto, inventou Mário de Andrade também um método de brasilidade. O sentido total de Paulicéia é inteiramente desmoralizante para todo bom-mocismo, não só o parnasiano, mas o de qualquer outro tipo.


Como derrubar o cimento da tradição morta? Como romper com os lugares-comuns? Como chegar à renovação? Como inventar São Paulo? A partir de "Paulicéia", Mário atingirá um crescendo em que intervirão estilos didáticos, pregações de líder, pesquisas na terra, e contos, romances, novidades muitas que formarão gerações de escritores voltados para um modo de expressão brasileira.


"Paulicéia" surgiria num momento de raiva, depois de uma briga de família, por ter comprado, sem poder, um busto de Brecheret, depois de quase um ano de angústias interrogativas, entre desgostos, trabalhos urgentes, dívidas, brigas, em pouco mais de uma semana jogou no papel um canto bárbaro, começando pelo seu giro inconfidente: "São Paulo, comoção de minha vida..."


Ficou então acertado, entre os revolucionários que preparavam uma Semana de Arte Moderna no Teatro Municipal de São Paulo, entre 11 e 17 de fevereiro de 1922, que Mário leria sua "Paulicéia" num momento culminante do acontecimento. Os revolucionários eram, entre outros, Menotti del Picchia, Oswald de Andrade, Graça Aranha, Ronald de Carvalho, Paulo Prado, Guilherme de Almeida, Ribeiro Couto. Aconteceu que um grupo de jovens resolveu derrubar o encontro, com vaias barulhentas que perturbaram a leitura do poema de Oswald de Andrade, que antecedia a intervenção de Mário com sua "Paulicéia". Viu-se Mário na situação de não conseguir falar. Os companheiros, principalmente Menotti, levaram-no a enfrentar as vaias. O seu "São Paulo, comoção de minha vida..." provocou um silêncio que logo voltou a se transformar em gritos e assobios, o que não impediu que Mário lesse, bem alto, versos como "Perfume de Paris...Arys", e chegassa à presença do Tietê no poema, entrando em seguida nas rimas em "inas" e em "ento", para destacar o verso: "Oh! Este orgulho máximo de ser paulistamente".


O poema insistia em palavras nacionalizantes, citava "bananeiras, araras, colibris, sabiás, jandaias, abacaxis, cajus", escolhia rimas em "ais-ais", "us-us", "ó-ó". Depois de "Paulicéia desvairada", nunca mais a poesia brasileira foi a mesma, e Mário faria ainda, em 1942, um diário poético chamado "Losango cáqui", numa busca do verso novo e renovado, que iria culminar em outro poema longo escrito na mesma época: o "Noturno de Belo Horizonte".


"Macunaíma" viria fazer pela prosa brasileira o que "Paulicéia desvairada" fizera pela poesia. Mais uma vez, a língua e a linguagem passavam por mudanças, tendo Mário de Andrade insuflado então, na prosa narrativa, um abrasileiramento diferente, um abrasileiramento que ninguém tentara antes. Nele, tinha início um Tropicalismo novo, uma aceitação de que o País conquistara um campo diferente e conseguira usar brasileiramente a língua que nos viera de Portugal e que aqui as vogais claras do Tupi e do Iorubá provocando uma renovação no falar e na inventividade no criar palavras.


A influência das idéias renovadoras da Semana de 22 logo atingiria outros setores do pensamento brasileiro e, no mesmo ano de 22, em 5 de julho, eclodia a revolta do Forte de Copacabana. De então até 1930, uma série de atos e rebeldia, a revolução de 1924, a marcha da Coluna Prestes pelo Brasil afora, revelavam a intranqüilidade que chegaria à Revolução de 1930, que mudou tudo.


Embora marcada pelo tempo, a força da poesia de Mário de Andrade se mantém intacta, modernista, mas já agora imodernista, definitiva como obra que deixa de ser de um poeta para pertencer a um povo.


Das várias edições dos poemas de Mário de Andrade, a da Editora Itatiaia engloba num volume "Paulicéia desvairada", "Losango cáqui", "Clan do jaboti" e "Remates de males". Capa de Branca de Castro.


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 17/1/2006