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Instante de Natal

 

Engrena a ré e ajeita o carro dentro da garagem. Tudo sairá bem. A mulher distrairá as crianças enquanto ele abrirá a mala do automóvel e apanhará os presentes miúdos, aqueles que ficaram para a última hora.

A bicicleta da filha mais velha e o velocípede da menor já estão no quarto da empregada, escondidos da curiosidade das garotas. Ficou faltando aquilo que elas chamavam de “porcarias”.

A lista que haviam feito incluía muitas bonecas, jogos de armar, brinquedos de corda, caixinhas de música, caixas de bombons.

Pois agora tirava os embrulhos da mala do carro e atravessava o quintal, aderente às paredes como os lobos de desenho animado, evitando ser apanhado em flagrante.

Na semana anterior, gastara o domingo armando a árvore de Natal. De tanto subir e descer uma escada meio bamba, de tanto curvar o pescoço e os braços, estava com as costas doloridas. Culpou a idade, a má postura quando escrevia, o medo de tomar remédios.

O que interessava, afinal, é que a árvore ficara imponente e colorida, as crianças passavam a noite olhando as luzinhas piscarem. Depois, quando todos iam dormir, ele é quem ficava sozinho, fiscalizando a árvore, tomando conta das luzinhas que não podiam queimar.

Conseguiu guardar os embrulhos no armário que havia lá para as bandas do fim do quintal. À noite, quando as meninas estivessem dormindo, ele iria buscar.

Sempre que mudam de cozinheira, enquanto a mulher interroga a candidata para saber o que sabe fazer, ele se limita a uma única pergunta: “Sabe fazer rabanadas?”.

O Natal podia mudar, ele podia mudar (e mudou muito), mas as rabanadas não podiam mudar. Tinham que ser como as que a mãe dele fazia, grossas, encharcadas de leite, polvilhadas de açúcar e canela, macias e perfumadas.

Na copa, a mulher enfeita um abacaxi com fitas vermelhas, ele verifica que as passas estão boas, melhores do que as do ano passado.

As meninas estão excitadas, pedem que a árvore seja logo acesa. Ainda não são 18h, a tarde está clara, suave, a noite de Natal não começou, mas quem manda em sua casa e em seu Natal é ele mesmo.

Com um gesto solene, valorizado por uma hesitação imaginária, acende a árvore, senta na poltrona em frente e fica olhando tudo.

A casa, os móveis, os lustres, o braço da mulher que aparece na porta que dá para a copa, o cheiro das rabanadas, a geladeira abarrotada de coisas gostosas e geladas, o abacaxi cor-de-creme, enrolado em fitas vermelhas, como um rei.

As meninas agora batem palmas, acompanhando o anúncio da televisão onde há um trenó puxando um Papai Noel imenso de gordo.

Com preguiça de sair da poltrona, ele inventaria mentalmente que na geladeira está o Grandjó, o vinho branco português muito doce, doce demais, que em criança ele adorava e agora detesta, mas as meninas gostam de tomar -e ficam com os olhinhos brilhando num gostoso pleonasmo, os olhinhos delas brilham sem vinho mesmo.

Ele sente, então, um pouco de sono. Deve ser cansaço.

Virara-se muito naquele fim de ano, trabalhara como um condenado, adaptara dois Júlios Vernes e um Mark Twain para a editora especializada em livros infantojuvenis, levara empurrões pela cidade para comprar tantos presentes contraditórios e agora tinha de esperar pela ceia, fazer as crianças irem para a cama, depois o trabalhão de apanhar os embrulhos, a bicicleta, o velocípede (haverá muita cara arranhada nos próximos dias, mas no armário do banheiro há sólido estoque de mercurocromo).

Por tudo isso ele se sente cansado e fecha os olhos.

E está de olhos fechados quando, de repente, há um silêncio em torno de tudo, um silêncio fundo e estanque, que imobiliza o tempo, que parece nascer do espaço.

As meninas pararam de bater palmas, estão se aprontando para a ceia. A mulher vem lá de dentro, trazendo o abacaxi enfeitado e coroado que nem um rei.

Ele abre os olhos mais uma vez para ver aquilo tudo, apalpar a sua festa que tem cheiro de rabanada, gosto de lembranças e cor de árvore de Natal.Mas logo fecha os olhos, com força e depressa, para jogar aquilo tudo na memória, âncora que descerá até o fundo e o amarrará num breve instante. Instante de Natal. Instante dele mesmo.

Folha de São Paulo, 24/12/2010