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A imperfeita descoberta do Camboja

 

No quadro do dinamismo do Sudeste Asiático, o Camboja é o país que, literalmente, veio à força da modernidade, pela recuperação da riqueza única de seu passado histórico. E, tal, não em função de uma convivência multissecular, já que essas raízes vão, ineditamente, pelos antecedentes do Império Khmer, aos 800 a.C, e à sucessão de construções ciclópicas de seus reis. Todos esses monumentos, até meados do século XIX, estavam, por inteiro, cobertos pela vegetação, no que mostram as raízes gigantescas, quase a sufocar as muralhas à sua volta. As primeiras descobertas ocidentais nasceram de exploradores individuais, financiados, a custo, por entidades científicas, e não por qualquer iniciativa pública.

O desvendamento veio, paulatino, na sucessão dos templos de Angkor na massa, via de regra repetida, dos bulbos das suas torres, de 60 a 80 metros, cercadas de fossos e novas atalaias, decoradas de felinos e elefantes. No entorno, galerias narram a épica Khmer, no lavor minucioso das fachadas, entramado com o lótus espalmado. Essas construções, em extensão mais que quilométrica, mostram a sucessão infinita das apsaras, e das musas de Vishnu, acompanhadas do barroco inaudito das fileiras das tropas, nas vitórias sucessivas dos khmeres contra os chapas.

A sucessão da pedra rendada cansa o andar, no presságio do recado do Império Khmer. Ou seja, o de uma obra inacabada, sempre infinita  na sua moção à cata do mais além. Inserida no próprio imo da cultura budista, os monumentos se multiplicam nos jogos das faces da divindade, cada uma a comandar um ponto cardeal. A ponte que nos leva ao centro de Angkor Wat contrapõe, dos seus lados, o bem e o mal, na figura de uma série de semblantes budistas, o sorriso perene e a face do sofrimento. Puxam, em contraponto, a enorme cobra sagrada, fonte da felicidade ou do sofrimento, na caminhada desta frágil, mas determinada, mortalidade.

O Sudeste Asiático, na península, exibe toda a cautela de seu mosaico cultural, no rigor com que Siem Reap, a cidade de Angkor Wat, contrapõe o seu mercado chinês ao hindu. Não se encerrou, ainda, a redescoberta do passado, que sairá da floresta como uma Amazônia já edificada e escondida. Mas é o que, na certeza deste encontro do mesmo, tão exuberante quanto repetido, que a identidade nacional do Camboja faz da cultura Khmer um empenho que não a revive, mas perenemente a reencontra.

Jornal do Commercio (RJ), 10/12/2012