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Imperdível

 

Jorge Amado costumava me dizer que, quando cedia os direitos de um texto seu para adaptação (cinema, tevê, teatro), esquecia que era o autor. Isso porque, argumentava, o diretor acabaria fazendo aquilo que achava melhor, um direito que Jorge aliás reconhecia. Com os anos, aprendi que o grande escritor baiano tinha razão. Muitos de meus textos foram adaptados com resultados muito variáveis. Os direitos de O Centauro no Jardim foram vendidos, por um agente literário, a uma produtora de Hollywood. Eu não tinha a menor idéia do que fariam para adaptar à tela um livro cujo principal personagem é metade homem e metade cavalo. E eles, constatei depois, também não: o filme nunca foi realizado. Mas, na Alemanha, a história gerou uma peça de teatro, e a atriz que fazia o papel de centauro conseguiu a façanha de caminhar pelo palco – sem fantasia, sem nada – como se fosse um centauro. Um resultado inesperado.


***


Tempos atrás entrou em contato comigo a atriz carioca Inez Vianna. Queria adaptar para o palco A Mulher que Escreveu a Bíblia, livro do qual tinha gostado muito. O seu entusiasmo a respeito era contagiante, eu concordei, mas devo dizer que não sabia bem o que esperar. Afinal, trata-se de uma história que se passa mil anos antes de Cristo, na corte do rei bíblico Salomão. Para a história, eu tinha me baseado numa afirmativa do scholar americano Harold Bloom – controversa, para dizer o mínimo – segundo a qual o Antigo Testamento fora escrito, a pedido do rei, por uma mulher. Numa estrutura patriarcal como eram, e são, as sociedades do Oriente Médio era muito pouco provável que uma mulher fosse encarregada de uma missão desse tipo. Mas a idéia fascinou-me, e logo a história estava nascendo em minha cabeça. A pergunta principal era: por que o rei encarregaria uma mulher (na história, uma de suas 700 esposas) de escrever o Antigo Testamento? A resposta também surgiu automática: porque ela era muito feia, tão feia que desencorajava o soberano a cumprir as obrigações matrimoniais.


Inteligente como era, Salomão deu a essa mulher, que sabia ler e escrever, o encargo de redigir o texto bíblico, com o que matava dois coelhos de uma cajadada: providenciava uma obra importante e arranjava uma distração para a reividicadora esposa.


***


História de difícil adaptação, como vocês vêem. Mas na brilhante adaptação de Thereza Falcão, e na brilhante direção do gaúcho Guilherme Piva, o resultado é fantástico, como constatei quando, sem saber o que ia ver, assisti no Rio à peça. Trata-se de um monólogo, mas este monólogo é interpretado por Inez Vianna, e isso faz toda a diferença. Gente, ela é uma grande atriz, justificando todos os prêmios, todas as indicações a prêmios, e todos os elogios da imprensa do centro do país. Minha dúvida maior era: como Inez, bela mulher, faria o papel de uma feia?


Maquiagem?


Não. Ela aparece como é, e com isso transmite uma mensagem mais que atual nesses tempos de culto à beleza: a feiúra sem expressão física, claro, mas é sobretudo um jeito de ser. Na minha história, aliás, a personagem (e isto aconteceu porque, como sabem os escritores, não raro os personagens adquirem vida própria) supera a sua condição de suposta inferioridade, luta por sua dignidade – e vence.


Neste dia 21, às 20h, a peça vai ser apresentada no Teatro do Sesc, na Alberto Bins 665. Preciso recomendar a vocês que não percam? Não, não preciso recomendar, vocês já sabem disso. Vão lá e descubram um dos mais extraordinários espetáculos já vistos em nosso país.




Zero Hora (RS) 19/10/2008

Zero Hora (RS), 19/10/2008