Diante de um iniciante novo milênio, a Igreja de Cristo se encontra, querendo ou não, em uma curiosa e instigante posição. Ela vê chegar a nova época da história com seu olhar de 2000 anos. Olhar antigo, que viu de tudo, gravou e registrou muita coisa. Mas não gasto e cansado olhar. Olhar que lhe permite comparar o que está por acontecer com tudo quanto ela já pôde contemplar no passado: coisas boas e ruins, satisfações e frustrações, valores humanos e desvalores. Ao mesmo tempo ela lança sobre o novo milênio um olhar de criança, perscrutador e admirativo, disposto a discernir o novo que toda e qualquer transição histórica traz em si. Nesse olhar traduz em si o espanto e a surpresa em face do jamais visto e do inesperado.
Muito significativamente, a Igreja já há alguns anos, ao preparar-se para o Terceiro Milênio, recusou uma atitude milenarista. Esta seria ou de mau augúrio de medo e de angústia diante do desconhecido ou de simples festejo, de otimismo superficial e enganoso. A Igreja preferiu interrogar-se sobre os reais desafios que traz a passagem do tempo. É o que não cessa de fazer, cheia de esperança, na soleira da nova etapa.
Algumas características principais, prescindindo de estéreis conjecturas astrológico-zodiacais, parecem compor a face do Terceiro Milênio. É, fora de dúvida, uma época de progresso técnico e científico: nunca experimentado nem sequer sonhado, tal progresso é uma nova chance para a humanidade em vários domínios. É uma época do máximo desenvolvimento das comunicações sociais. É, por isso mesmo, época de globalização e de planetarização, com todos os aspectos positivos (globalização da solidariedade e do esforço convergente em nível mundial) e todos os riscos (destruição dos mais fracos e indefesos) que comporta o fenômeno. Não se pode ignorar nem menosprezar a alta valorização das individualidades contra toda forma de massificação. A secularização - que não é o mesmo que ateísmo ou agnosticismo - aparece como uma marca da cultura. A procura desenfreada do bem-estar, do lazer e do conforto, não isenta de uma nota de hedonismo, é outra marca.
Diante dessas características, a Igreja pensa que, sem pretender definir, ela, as linhas do milênio, cabe-lhe conviver e, quando possível, colaborar com a nova situação. Sua atitude não é a de querer a todo preço ajustar-se ou adaptar-se mas a de se perguntar como e em que medida, e de que modo, mantendo-se fiel à sua natureza, pode cooperar para manter no novo milênio alguns valores essenciais.
O primeiro, creio, é o de um autêntico senso religioso. Historiadores e analistas dos mais argutos já escreveram que o novo século e, por extensão, o novo milênio será, por definição, místico. É uma visão profunda das coisas que merece ser considerada. Mas a experiência está mostrando que essa mística pode sucumbir facilmente - precipitar-se - em mera religiosidade irracional, na superstição ou outras formas de alienação religiosa mais ou menos próxima da new-age. Por paradoxal que seja, os novos tempos aceitam, de um lado, formas exacerbadas e agudas de materialismo e positivismo e, de outro lado, a atração da magia, dos duendes, fadas e outros imaginários. Cabe à Igreja uma tarefa que é só dela: ajudar na descoberta de uma religiosidade autêntica. À altura do homem.
Por isso, outro valor é o de um verdadeiro humanismo. Corre-se o perigo de ver-se agravar certa propensão inumana que já prevaleceu em muitos momentos dos séculos passados. É o perigo de criar, em nome do homem, uma cultura contra o homem e suas dimensões essenciais como a vida e a qualidade de vida, a convivência, a solidariedade... O risco é observar, não sem horror, que a principal espécie em extinção é o próprio homem.
Uma outra contribuição da Igreja será a de ajudar a cultura do novo milênio a limitar o absoluto da técnica. Impor tais limites é uma operação salutar sem a qual a humanidade se verá oprimida e escravizada e se transformará em mundo “robotizado” ou “computadorizado”. O antídoto à supervalorização e à dominação da técnica são as dimensões da arte, do lúdico, da gratuidade, da espiritualidade, da ética para evitar um mundo dominado pela tecnocracia ou o tecnicismo.
O exercício de sua função predominantemente religiosa - sacramentos, orações, contemplação, busca do Absoluto de Deus - é o meio de que a Igreja dispõe se quiser influir sobre o milênio. Mas ela não pode negligenciar o cuidado de dialogar com a nova cultura através de uma afirmação contínua dos valores éticos, morais e espirituais. Estes não são o apanágio e propriedade sua: constituem o objetivo de muitas outras instituições ( família, escola, grupos sociais). Desses valores, porém, ela é testemunha e é, garante, privilegiada. Ela o será, não mitigando ou atenuando os aspectos essenciais da sua vocação primeira, mas sendo-lhes corajosamente e coerentemente fiel.
Brasil Norte - Boa Vista - Roraima, 27/04/2001