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Hal-9000 cabe hoje numa gaveta

 

Reli há tempos um artigo meu, dos anos 90, a respeito de "2001: Uma Odisséia no Espaço" (1968). Eu devia ser muito jovem. Apesar de minha paixão por Stanley Kubrick, arrisquei que "2001" tendia a perder em substância à medida que a tecnologia o fosse superando. E citei a sequência em que Keir Dullea "mata" Hal-9000, o computador que dirige a nave especial, desligando suas válvulas que ocupam um aposento inteiro. As plateias do futuro iriam rir daquilo, eu disse, como riem hoje quando alguém, num filme dos anos 50, tira as calças e está usando cuecas samba-canção ---porque, com os chips, o onisciente e onipotente Hal cabe numa gaveta.

Mas, se fosse assim, os celulares tornariam arcaico qualquer filme envolvendo telefones, o que significa todos os filmes exceto os de caubói e de dinossauro. Em "Disque ‘M’ para Matar" (1953), de Hitchcock, por exemplo, Ray Milland tem de ligar a certa hora para sua mulher Grace Kelly, a fim de que ela vá até a sala e atenda ao telefone de costas para a cortina ---atrás da qual está o homem que ele contratou para estrangulá-la. O problema é que, quando ele vai ao telefone do restaurante, este está sendo usado por alguém. Bem, há décadas ninguém mais "disca". Depois, sua mulher teria um celular à mão. E, com o celular, Ray Milland não precisaria disputar o aparelho com ninguém. Donde Hitchcock não poderia fazer este filme hoje.

E o que dizer de "Superman" (1978)? As cabines telefônicas, até as de Londres, estão sendo aposentadas porque, com o celular, ninguém mais as usa. E, numa Metrópolis sem cabines, Christopher Reeve teria de trocar o terno de Clark Kent pela fantasia de super-herói no meio da rua.

Por sorte, os americanos inventaram a chamada "suspension of disbelief", um artifício pelo qual você desliga o racional e se deixa levar pela emoção do que está vendo.

O que, às vezes, torna a vida ótima.

Folha de São Paulo, 03/03/2024