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Gladiador defunto mas intacto

 

Há pessoas que, quando morrem, não é nem justo que não tenha nada melhor do lado de lá. Semana passada, no dia 22 de agosto, celebramos 39 anos da morte de Gláuber Rocha, nosso maior e mais discutido cineasta brasileiro. É até injusto reduzir seu talento e sua importância à palavra “cineasta”, aprisioná-lo nessa atividade. Gláuber foi tudo o que era possível ser no mundo da cultura, da criação e dos costumes, em seu tempo e para além dele.

Na Bahia, onde nasceu, ele começou sua agitação e fez seus primeiros filmes de curta-metragem, assim como os longas impactantes “Barravento” e “Deus e o diabo na terra do sol”. Além dos filmes e do cinema, Gláuber inaugurou uma vida de ideias e inquietações que o tornariam um pensador indispensável do Brasil e do mundo em que vivia. Segundo Nélson Pereira dos Santos, mestre de toda a nossa geração, “o Cinema Novo é quando Gláuber Rocha chega ao Rio de Janeiro”. Era ele que cobrava, de cada um de nós, a contribuição ao que deveria ser o Brasil nas telas. Ou as telas do Brasil.

É bobagem tentar decifrar os sonhos de Gláuber, tudo o que lhe atormentava como projeto. Gláuber não tinha sonhos, tinha delírios. Delírios tão belos e explosivos, destrutivos e criativos, quanto o mundo em que ele gostaria de ter vivido. Quase no fim de sua vida, em Sintra, Portugal, ele me deu a ler o roteiro de um novo filme que pretendia fazer na Europa. No final desse filme que nunca foi feito, depois de uma guerra planetária de extermínio, envolvendo forças políticas da época, todas sujas e repudiáveis, o mundo simplesmente se desfazia. Na última cena, o casal de heróis navegava em frágil embarcação, em direção à derradeira ilha tropical, onde iriam viver seu amor sozinhos e em paz.

Além da luz que os filmes de Gláuber deitaram sobre seu tempo, seus gestos de insatisfação, em textos contundentes e aparições na televisão, sempre foram decisivos para a formação do que foi o Brasil de seu tempo. A cada escândalo provocado por suas declarações sobre cinema, política ou costumes correspondia uma nova forma de pensar o assunto, ainda que não fosse a que ele sugeria. Gláuber era uma fábrica artesanal de ideias que não se encontravam em livro algum, de nenhuma tendência. Na melhor das hipóteses, ele as confrontava com amigos de confiança, a quem nunca deixou de consultar. Um guerreiro incansável que enchia seus próximos com tanta doçura.

O que em Gláuber chamavam de “loucura” tinha sempre uma clara estratégia; e a estratégia não é um hábito de loucos. Ninguém no mundo, mesmo seus contemporâneos e aqueles que conviveram com ele, jamais entenderá Gláuber completamente, como se acaba entendendo um poema de Jorge de Lima, por exemplo. Ser um mistério permanente, fonte inesgotável de novas revelações e descobertas à medida que o tempo passa, é o que caracteriza os poucos seres excepcionais, que a angústia e a iluminação humanas são capazes de produzir.

Já repeti algumas vezes que Gláuber Rocha foi um cometa que passou em nossas vidas, uma luz muito intensa e bela que atravessou rápido demais nosso firmamento. Tão cedo veremos nada igual; mas também não esqueceremos, nunca mais, o que vimos. Penso que a melhor epígrafe para Gláuber está no que ele mesmo escreveu, em 1978: “A descoberta poética do final do século será a materialização da eternidade”.

Gláuber sempre fará falta. Ele certamente não deixaria passar em brancas nuvens a declaração do embaixador americano, Todd Chapman, em entrevista recente, sobre o 5G, a internet das coisas, a evolução mais radical do universo digital. O leilão da rede 5G no Brasil está previsto para 2021, e Mr. Chapman afirma que, se o Brasil optar pela tecnologia chinesa da Huawei, reconhecidamente a mais avançada hoje, terá que “enfrentar as consequências”. Não gosto do regime chinês e de seu modo de vida, detesto o autoritarismo que, neste momento, se espalha pelo mundo, à direita e à esquerda. Mas o que é que a embaixada americana tem a ver com nosso futuro tecnológico? Gláuber não deixaria barato.

O Globo, 31/08/2020