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Genolino e a crônica

 

Vivemos sob o império do Tempo, que talvez devesse estar sempre escrito com T maiúsculo. Não só escrito, mas também dito, pondo-se uma ênfase na pronúncia da palavra, de tal modo que se entenda logo que falamos de coisa muito séria. A palavra grega "chronos" ficou na memória dos povos e serviu de base a discursos e conceitos.


A invenção de Gutenberg de tipos móveis capazes de imprimir sobre uma folha de papel, mudara o mundo. Multiplicaram-se então as "crônicas", a descrição de feitos e acontecimentos, que se tornaram comuns e são a base de pesquisas feitas posteriormente.


Quando escrevi meu livro "Alcácer - Kibir", li e reli as "crônicas portuguesas", principalmente as de Gomes Eanes Zurara, "A crônica de Guiné" e a "Crônica da Tomada de Ceuta", além de outras narrativas como a "Crônica de Dom Henrique" e as de Dom Duarte, do Infante Santo e de Afonso V. Até os naufrágios de navios portugueses - e foram muitos - serviram de matéria, em "relações" impressas em Lisboa e preservadas nos arquivos portugueses.


Quando Fernando Pessoa colocou em seus versos que as lágrimas de Portugal eram o sal do mar, estava pondo uma verdade em poesia. Os 20 relatos de naufrágios publicados em português entre a segunda metade do século XVI, quando os portugueses povoavam o Brasil, e o final do século XVII, são crônicas e reportagens.


Com os tipos móveis de Gutenberg era natural que surgisse esta coisa poderosa na formação de idéias, desejos, atos, decisões, escolhas - o jornal. Que vem a ser o jornal? Em meu livro "Jornalismo e literatura", tentei entrar no assunto: chamei-o de Literatura sugerindo que "jornalismo é literatura sob pressão", pressão do tempo já que o artigo, a reportagem, a notícia - seja o que for destinado a sair no jornal, deverá ser feito hoje para sair amanhã ou depois, num dia certo, e ocupar um espaço também determinado na página impressa do órgão.


O Jornal é um "periódico", que é como os portugueses costumam chamá-lo, isto é, aparece dentro de períodos certos, todo dia - que é o sentido literal da palavra jornal - ou toda semana, toda quinzena, todo mês - e aí está de novo o tempo, com T maiúsculo, dominando as fases de aparecimento da folha, revista, relação, relatório, seja o que for o veículo que se use de tempos em tempos.


Deixaram sua marca na crônica brasileira de nosso tempo: Rubem Braga, Rachel de Queirós, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meirelles, Vinicius de Moraes, Clarice Lispector, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, Raimundo Magalhães Jr., Sérgio Porto, Antonio Maria, entre muitos outros.


No meio desse grupo extraordinário de cronistas, situou-se Genolino Amado, diferente de todos, pelo seu estilo e pelo seu veículo. Vindo bem jovem de Sergipe - seu livro de memórias "Um menino sergipano" é um trabalho que, a par de um grande lirismo, levanta um tempo da maior significação na vida brasileira - Genolino Amado, cujo centenário de nascimento se comemora este ano, passou por vários jornais, em São Paulo e no Rio de Janeiro, antes de se fixar numa atividade de que foi pioneiro: a de cronista radiofônico.


Passou a escrever textos que seriam ouvidos e não lidos, teve de criar um estilo, que fizesse o ouvinte fixar-se no que ouvia, dando às palavras do locutor a maior atenção. No caso, o locutor era, na maioria das vezes, César Ladeira, que, descoberto em São Paulo, onde entusiasmou os combatentes da revolta constitucionalista de 1932, havia, depois da revolução, vindo para o Rio de Janeiro onde pontificou na Rádio Mayrink Veiga.


Em tudo de acordo com o meio de veiculação de suas crônicas, escrevia Genolino Amado num estilo direto, substantivo, ao mesmo tempo em que se colocava como o intérprete de toda a cidade. Por isto mesmo, seu programa tinha o nome de "Crônica da Cidade Maravilhosa", o que levou o compositor André Filho a compor sua marcha, hoje hino oficial do Rio de Janeiro.


Genolino era um homem do seu tempo. Creio, contudo, que o tempo, com t minúsculo ou maiúsculo, não destrói o que está feito - ou melhor, o que foi feito em espírito de verdade. O período em que o rádio predominou em nossa terra continua conosco, às vezes arquivado, quando a memória enfraquece, arquivado em imagens, discos, principalmente arquivado nesse objeto maravilhoso, o livro, que nos traz - aqui e agora - as crônicas de Genolino Amado, indestrutíveis, coladas em páginas escritas e fincadas na memória de um tempo. Genolino Amado foi um belo momento da crônica brasileira, um momento que não podemos esquecer.


País sem memória está morto, e não sabe.


 


Tribuna da imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em 17/07/2002

Tribuna da imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em, 17/07/2002