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"Gementes et flentes"

 

Meu primeiro contato com a miséria humana foi quando me ensinaram a rezar. Menino de classe média, pai e mãe católicos comuns, ao aprender a rezar a "Ave Maria", estranhei a palavra "ventre", me disseram que era a mesma coisa que "barriga". Não foi por acaso que dei ao meu primeiro romance o título de "O ventre" –achava imoral rezar à Virgem Mãe de Deus com alusão à barriga, que me parecia torpe.

Pior foi quando me ensinaram a rezar o "Salve Rainha". Além do "vale de lágrimas", olhava a rua Cabuçu, que nada tinha de vale, e muito menos de lágrimas, era cheia de bicicletas, patins, bolas de futebol "Sparta número 5", a mesma que derrubara um beque do América num chute de Hércules, ponta-esquerda do Fluminense e da seleção nacional.

E mais adiante o terrível "gemendo e chorando". Aprendi a rezar em latim: "gementes et flentes". Nunca fui de gemer, a não ser em cadeiras de dentista. Chorar, eu chorava, por tudo e por nada, quando me botavam de castigo nas faltas leves e apanhava de vara de marmelo nas mais graves.

Foi por aí que suspeitei (mais tarde tive certeza) da crueldade do mundo e da miséria humana, a minha e as dos outros. A começar pelas varas de marmelo que as quitandas botavam bem à mostra, todo pai que se respeitava comprava algumas para ensinar a prole a se comportar decentemente.

No plano familiar, a miséria se resumia nas surras que todos os meninos levavam para aprender a se comportarem, sem dizer palavrões, sem cometer atos impudentes.

Não há mais varas de marmelo nas quitandas, nem quitandas há. Daí que continuamos a gemer e a chorar pelas misérias nacionais que incluem corrupção nas classes dirigentes, violência em quase todas as classes. E a falta de esperança em dias melhores. 

Folha de S. Paulo (RJ), 17/05/2015