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Gauchidade e alpargatas

 

Guri nascido e criado no bairro do Bom Fim eu não podia me considerar um gaúcho da gema, daqueles da Fronteira. Eu tinha bombachas, claro (que a gente, por alguma razão, só usava em Capão da Canoa), e algumas vezes andei a cavalo com resultados tão deprimentes que os eqüinos corriam a se jogar no divã do analista mais próximo. Quando O Centauro no Jardim foi publicado nos Estados Unidos, a editora America resolveu preparar material de divulgação e chamou um fotógrafo (não, infelizmente não era o Beto Scliar) para fazer algumas fotos. Ouvindo falar em "centauro" o rapaz teve uma idéia: fotografar-me no Central Park cavalgando. O que eu recusei, claro. Poderia contar com a compaixão, ainda que constrangida, dos cavalos do Rio Grande, mas um eqüino americano certamente me atiraria da sela. Ainda estava rindo da idéia quando o cara me fotografou - e a foto saiu ótima. O clássico caso de escrever direito por linhas tortas.


Mas depois que a gente incorpora a gauchidade ela passa a fazer parte do nosso jeito de ser. Entre as fotos de imigrantes judeus no RS, há uma que mostra dois homens, lado a lado, ambos pilchados, tomando chimarrão. Um é um gaúcho nativo, o outro, um colono judeu vindo da Rússia. É absolutamente impossível dizer qual é o colono, qual é o gaúcho. Entrando na Faculdade de Medicina, onde tinha muitos colegas da Fronteira, logo aprendi a falar o "tchê". E nunca mais o abandonei. Nas palestras que dou em outros Estados, as pessoas acham graça, mas é algo do qual me orgulho. Assim como me orgulho de usar o "tu". É verdade que o "você" está tomando conta e que há até uma pressão nesse sentido: as editoras do centro do país nunca deixam de observar, verdade que com muito tato, que, do ponto de vista de público, "você" é melhor. Talvez seja, do ponto de vista mercadológico. Mas não do ponto de vista da autenticidade.


A cultura gaúcha é a cultura da simplicidade, do ascetismo, claro. Visitem, por exemplo, o quarto de Getúlio Vargas no Palácio do Catete, no Rio, e que foi o cenário de seu suicídio. Parece mais uma cela monástica do que o aposento de um presidente da República. Nossa comida é honesta; nada desses preciosismos culinários que, nos restaurantes chiques, servem para mandar a conta para as alturas. Claro, há enfeites: a guaiaca, por exemplo, pode ter belos adornos. E há bombachas muito vistosas.


Mas aí chegamos aos pés, aquela essencial parte de nossa anatomia, aquilo que nos coloca em contato com a terra. Em geral, culturas eqüestres, como a nossa, não dispensam as botas. Agora: a bota não é apenas um calçado, é um símbolo de poder. "Sob o tacão do opressor" era uma expressão muito usada no passado para mobilizar a indignação dos oprimidos. Pisar com a bota no pescoço de alguém caído era o cúmulo da humilhação.


Gaúcho usa botas. Mas gaúcho usa também alpargatas. E a alpargata, diferente da bota, é feita de pano, não de couro. A alpargata não tem cano alto. A alpargata não admite esporas. Mas a alpargata protege os pés. E a alpargata humaniza. Gauchismo, no fundo é isso, é uma forma de exercermos nossa humanidade neste cenário em que vivemos. E do qual devemos ter muito, mas muito orgulho.


Zero Hora (RS) 4/5/2008