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Fundamentalismos e nações a perigo

 

A cidade de Dili, no Timor, vem de ser sacudida pela mais violenta comoção popular desde a separação da Indonésia. Vencendo Alan García, no Peru, Humala, o derrotado, declara que apenas começa o conflito diante do país que vê inexoravelmente rachado. Evo Morales, por seu lado, não deixa dúvidas de que ser boliviano é antes de tudo reivindicar a sua matriz Aymara, numa nação em que o colonialismo exasperou as condições constitutivas de marginalidade para além da pobreza. Na luta contra o governo constituído do Timor entrou em pauta a resistência das tropas do Exército a serem obrigados a falar português, consoante a nova cidadania trazida com a independência. A massa da população permanece fiel ao idioma indonésio, já que a língua de Camões, ao momento da independência não vinha à boca de mais de 2% da população.


 


Todos esses exemplos trazem à baila a dificuldade intrínseca em que o próprio Estado-nação, assegurado como sinônimo das soberanias nos dois últimos séculos vê-se ferido na sua identidade coletiva. Seja pelo avanço das contradições da dominação internacional, seja, até, pelo artificialismo com que uma identidade coletiva pode hoje ser afirmada, diante do quadro das globalizações que reptaria aquelas formas políticas em que se viveu a história contemporânea.


 


O Grupo de Alto Nível das Nações Unidas, recém reunido em Dacar, deu-se conta, no estudo da crise das culturas e da aliança das civilizações da emergência, também, desses conflitos regressivos numa nova e inesperada ameaça à cultura da paz já tão ferida desde o 11 de setembro, e à beira da "guerra das religiões" para além dos conflitos de Estado como os conhecemos na entrada do século XXI. Em casos como o de Timor, da Bolívia ou do Peru, tal como do Equador, está em causa de forma obsoleta a discussão mesma da própria entidade nacional, que serviu de expressão da diferença dos povos como os reconheceu a modernidade.


 


No caso extremo do Timor, o que se discute é de até onde o elemento fundador desta afirmação, que é o da língua vê-se imposta pelo Estado nascente, fora do contexto em que o povo viveu a sua autenticidade pregressa. Na verdade, o português foi visto como fala do primeiro colonizador, mais do que como ingrediente da diferença, dentro da peculiar geografia do país de que se emancipou, clamando pela sua originalidade nos confins do arquipélago. O direito à nação timorense nasce, muito mais, dentro da marginalidade Indonésia, e, por aí, de raízes de uma confrontação local, do que, de fato, pelo enraizamento numa latinidade de 500 anos.


 


Não há a falar de fundamentalismo redivivo hoje como mola da identidade de Timor, mas sim em reconhecer a artificialidade da restauração do português como fato consumado, e não como efetiva experiência de multiculturalismo, onde a nossa língua é sócia minoritária, ainda que dinâmica, no propósito de soberania da terra de Ramos Horta e Xanana Gusmão. A reivindicação compulsória do idioma passa, de saída, a um reducionismo e ao risco da defesa de um artefato, senão de uma prótese histórica, ao que foi - e com tanto sucesso - o verdadeiro impulso dos timorenses à ruptura com a Indonésia.


 


A Bolívia de Morales já levou a reivindicação a um fundamentalismo profundo onde o veio Aymara ao lado do Quetchua, encontram uma identidade matriz, mas não menos aquém do quadro verdadeiramente identitário em que a Bolívia frustrou-se no seu desenvolvimento neste último século, explorada, em condições limite, pelo empreendimento extrativo colonial. No limite de marginalidade o seu povo não se pulverizou nas engrenagens da trituração histórica.


 


Deparou, sim, a parede da força pré-nacional, da maior expressão indígena no Continente, e é dela que se faz, hoje, uma reafirmação identitária, a que a simbologia de Evo Morales deu o ímpeto, ao mesmo tempo, novo e regressivo, no quadro de uma América andina, desertada da esperança do desenvolvimento e do nacionalismo do último meio século. É uma afirmação brutal da subjetividade primígena que aí irrompe, a buscar-se num quadro anterior ao da contradição dos domínios estrangeiros num reconhecimento tribal que, mantidos íntegros pela sua própria marginalidade, pode hoje se transformar em sujeito de uma expectativa e de um voto diferente em La Paz.


 


Evo Morales ameaça o velho conservatismo por esta mobilização política que se reconhece num quadro pré-nacional tanto a Bolívia de agora se vê devorada pelo enjeitamento estrutural da massa de sua população. O resultado final da proeza que recuou conscientemente ao fundamentalismo para dar impulso à mudança expõe ao risco reducionista o ganho de uma nação verdadeira, para além dos indigenismos regressivos, mas consciente das retóricas coletivas em que viveu o último século. Na mesma devolução a uma identidade prévia, e hoje ciosa da sua afirmação feroz, debater-se-á a próxima eleição equatoriana, tal como foi sob a mesma marca de avalanche que Humala quase fez ecoar em Lima o sucesso de Morales.


 


O substrato intocado dessas populações entra hoje no marco histórico, à margem do desenvolvimento, e dentro de uma cobrança distinta, crítica, senão bárbara, do que possa ser ainda a mudança. E até onde os fundamentalismos identitários, neste caso, podem criar, para a ciência política, esse desafio inovador de uma mobilização que desenterra uma identidade, excluída dos benefícios de um pseudoprogresso? Mas coletividades "bárbaras", subitamente dotadas da força da democracia e do que ela hoje propõe ao mundo que perdeu as ilusões de progresso, universal, e a seu tempo.


 


A mobilização política que começa a dizer ao que veio, hoje nos Andes tem o condão de saber se o seu remate é chegar, pelo voto, ao que só a prosperidade econômica, de fato, socializará. Ou de se Morales e seus futuros êmulos ganharam eleições para firmar dramaticamente que o fundamentalismo, a dar certo, supera o seu resultado proclamado. Não existirá nação Aymara ou Quetchua, mas órfãos, de vez, da frustra nação boliviana.


 


Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 16/06/2006

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro), 16/06/2006