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Euclides da Cunha e os gramáticos

 

Receita para escrever nomes próprios


Recentemente, respondendo, em Belo Horizonte, a uma pergunta do jornalista Régis Gonçalves, afirmei que fui professor de Português durante muito tempo. Foi aos 17 anos que comecei a dar aulas; e ainda não parei, porque, depois de velho, já transformado num daqueles que o atual Presidente chama de "aposentados vagabundos", criei as aulas-espetáculo, tendo sido uma delas, aliás, o motivo de minha viagem a Minas.


Assim, tendo começado quase que ao mesmo tempo a vida de escritor e a de professor, bem se pode imaginar quanto me vi às voltas com as regras ditadas durante todos aqueles anos por filólogos e gramáticos. De modo que faço justiça a eles, reconhecendo que os bons são indispensáveis: é necessário que alguém coloque alguma ordem no modo de um Povo falar e escrever seu idioma.


Mas, além de professor por vocação e necessidade, foi aos 12 anos que empreendi minhas primeiras tentativas no campo da Literatura. Eu começara a ler os primeiros livros-de-poesia e romances-de-aventuras que me caíram nas mãos. E, estimulado por eles, escrevi meu primeiro conto e meu primeiro poema. Aos 17, sob a influência da leitura de Ibsen, tentei escrever uma peça-teatro, que falhou, porque o escritor norueguês não era Mestre indicado para iniciar-me.


Foi, portanto, pelo encanto daqueles personagens, para mim fascinantes e misteriosos, que eram os escritores, que comecei a querer me transformar num deles. E foi assim que, começando a amar a Língua Portuguesa (com uma paixão que ainda hoje se mantém acesa) procurei estudá-la da melhor maneira que me fosse possível. Cheguei a estudar o Português medieval e um pouco de Latim para captar melhor o espírito, a forma e os segredos da nossa língua. Foi no decorrer de tal estudo que certa vez traduzi para o Latim um trecho de A Demanda do Santo Graal, novela-de-cavalaria que sempre exerceu sobre mim um fascínio tão forte quanto o da novela-picaresca. O desta começou com O Lazarilho de Tormes, livro que na pulsação realista de sua seiva popular sempre me foi indispensável para complementar o idealismo aristocrático e alegórico da outra.


Ao mesmo tempo, porém, preocupado com meu País e meu Povo, descobri que, para mim, como escritor era uma sorte que o Português falado no Brasil tivesse chegado aqui numa época em que a Cultura ibérica estava começando a se expressar pelo Barroco, caracterizado pela união de contrastes. Contrastes em que se fundiam o trágico e o cômico, o popular e o erudito, a novela-de-cavalaria medieval e a picaresca da Renascença; e tudo isso era muito importante para a maneira de escrever que eu procurava. Notei que o Barroco era pai do Romantismo, avô do Naturalismo e bisavô do Simbolismo - e todas essas cosmovisões passaram a me tocar pela via de Gregório de Mattos, José de Alencar, Euclydes da Cunha, Aluisio de Azevedo, Julio Ribeiro, Cruz e Sousa Augusto dos Anjos.


Foi aí que, quase sem querer, comecei a ser afetado por coisas que podem parecer modismos ou pormenores sem importância para os outros mas que, para mim, são fundamentais. E foi aí, também, que começou para mim um verdadeiro tormento, porque passei um bom tempo da minha vida procurando adaptar meu modo de escrever às regras que filólogos e gramáticos ditavam, às vezes de maneira autoritária, acadêmica e estreita.


Entretanto, conduzido por meu passado de professor militante, adiava a rebelião, que só começou quando alguns gramáticos passaram da conta e se meteram a mudar até os nomes de pessoas mortas, como Gregório de Mattos, e de lugares veneráveis e sagrados, como Igarassu, que eles queriam obrigar-nos a escrever Igaraçu. No dia em que conversamos sobre isso, meu amigo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira tentou justificar a mudança:ela acontecera porque Igarassu é um nome indígena e os gramáticos tinham decidido escrever com ç todos os nomes tupis onde tal fonema aparecesse. Rebati seu argumento: os Índios brasileiros nem sequer tinham linguagem escrita; os Brasileiros dos séculos 16, 17, 18 e 19 escreviam, todos, Igarassu; a decisão de escrever o nome com ç era, portanto, inteiramente absurda e arbitrária.


Mas meu grito final de revolta só ocorreu, mesmo, no dia em que abri uma Enciclopédia e lá encontrei meu nome escrito como Ariano Suaçuna, que, sem dúvida, mais parece nome de Cobra que de gente. Foi a partir daí que tomei a decisão de só escrever o que quero, e como quero. São minhas heranças barrocas, populares e simbolistas que explicam entre outras coisas minhas maiúsculas "arbitrárias" e meus hífens "não autorizados".


De outra parte, escrevo sempre com y os nomes de Sylvio Romero ou Euclydes da Cunha: a meu ver, as reformas só podem atingir - assim mesmo com reservas já apontadas - o presente e o futuro: o passado nunca. Principalmente no caso de meu Mestre, Euclydes da Cunha, que detestou uma reforma que os gramáticos fizeram em seu tempo e cujo autógrafo vi certa vez como quem olha uma relíquia: era assim - Euclydes da Cunha.


Diário de Pernambuco (PE) 23/8/2000