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"Eu" - O monossílabo que fala

 

Está sendo comemorado o primeiro centenário da publicação de um dos livros mais importantes (e estranhos) de nossa literatura. Digo "primeiro centenário" porque certamente haverá um segundo e sei lá se um terceiro. Vale dizer: considero o "Eu", de Augusto dos Anjos, ao mesmo tempo em que é a obra mais controvertida de nossas letras, é também, no campo específico da poesia, uma das mais reeditadas desde 1912.

Tratando-se, no caso, de um autor estreante, nascido num engenho do interior paraibano, que, com a ajuda de seu irmão Odilon, pagou a primeira edição de seus versos.

Cem anos depois, Ariano Suassuna, que está sendo indicado pelos seus admiradores para o prêmio Nobel, não fez por menos: "Ele foi o maior poeta brasileiro do século 20, e a sua importância equivale a de Euclydes da Cunha, sendo este último o grande representante da prosa brasileira. O livro 'Eu', de Augusto dos Anjos, com toda certeza, equivale ao livro 'Os Sertões' de Euclydes da Cunha".

Quando de sua publicação, de poucos exemplares e de distribuição basicamente local, houve mais escândalo do que crítica. O autor foi considerado um "caso patológico", um "poeta inclassificável". Seus versos não poderiam ser declamados sob pena de "provocar engulhos, risos e vaias". Para todos os efeitos, Augusto dos Anjos era "aberrante, estapafúrdio, desequilibrado".

Os entendidos até hoje não chegaram a uma conclusão a respeito dele. Alguns o consideram pré-modernista, pela audácia dos temas abordados; outros o situam numa categoria mais ou menos abstrata, como neoparnasiano.

Na realidade, o culto da forma, o rigor da métrica e o inesperado das rimas poderiam colocá-lo ao lado dos monstros sagrados, como Olavo Bilac, Raimundo Correia e Alberto de Oliveira.

Um de seus sonetos é mais moderno (e famoso) do que a maioria dos poemas gerados pela Semana de Arte Moderna. É talvez o mais citado do nosso acervo literário: "Ah! Um urubu pousou na minha sorte!". O soneto termina com um terceto tipicamente augustiano: "Mas o agregado abstrato das saudades/ fique batendo nas perpétuas grades/ do último verso que eu fizer no mundo!".

Famosos também, e popularíssimos, são os versos íntimos do poeta, um dos mais declamados de nossa literatura.

"Vês?! Ninguém assistiu ao formidável/ enterro de tua última quimera./ Somente a Ingratidão --esta pantera--/ foi tua companheira inseparável!/ Acostuma-te à lama que te espera! O homem, que nesta terra miserável/ mora entre feras, sente inevitável/ necessidade de também ser fera./ Toma um fósforo. Acende teu cigarro!/ O beijo, amigo, é a véspera do escarro./ A mão que afaga é a mesma que apedreja./ Se a alguém causa inda pena a tua chaga, apedreja essa mão vil que te afaga,/ escarra nessa boca que te beija!"

Otto Maria Carpeaux, autor da monumental "História da Literatura Universal" (oito volumes), destaca em Augusto dos Anjos "o mais original, o mais independente de todos os poetas brasileiros". É um poeta triste, seus temas são centrados na morte e na decomposição da matéria. Um crítico descobriu em seus versos a mistura dos elementos que o formaram: o índio perseguido, o negro escravizado e o europeu emigrado.

Enquanto muitos poetas procuram, segundo João Cabral de Melo Neto, "poetizar o poema", Augusto dos Anjos usava e abusava de nomes nada poéticos, sendo até mesmo acusado de simbolismo e cientismo: "carbono", "a mucosa carnívora dos lobos", "vi que era pó", "vi que era esterquínio", "neuroplasma", "plantas dicotiledôneas", "a miséria anatômica da ruga".

Cita autores nada poéticos, como Haeckel, Schopenhauer e Spencer. Mas trai suas influências maiores, a de Hoffmann, com seus contos fantásticos, e Edgar Allan Poe. Um de seus sonetos, "Morcego", até certo ponto lembra o cenário, o clima sombrio e enigmático de "O Corvo".

Nas comemorações do centenário de "Eu", que na Paraíba duraram uma semana, tive o prazer de encerrar a série de palestras numa mesa-redonda na qual tomaram parte o cronista Braulio Tavares e Fernando Melo, este último, autor de uma recente biografia de Augusto dos Anjos: um grande, um enorme poeta que concentrou sua obra, sua visão de mundo, num monossílabo que fala.

Folha de S. Paulo, 7/9/2012