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Estranhos acontecimentos do cotidiano

 

Como sabem os bem informados, Itaparica já registrou inúmeras descobertas de relevante interesse científico, em todas as áreas do conhecimento. As de maior impacto, sem dúvida, se relacionam com a reprodução animal. Rezam ultrapassados ditames da zoologia tradicional, por exemplo, que animais de espécies diferentes, a não ser no caso de algumas muito próximas, não podem acasalar-se e produzir descendentes - os mais notáveis dos quais são os burros e mulas em que a ilha sempre abundou, frutos do amor entre jegues e éguas. Ignoram os sábios apegados a essa convicção os fatos, a toda hora testemunhados, com que os bichos daqui a desmentem.


Para começar, uma breve visita ao Mercado, com acesso a fontes autorizadas, mostrará que o urubu participa significativamente da geração de galos de briga de estirpe superior. No início, mal orientado pela ciência estabelecida, cheguei a manifestar incredulidade, mas, apesar de até hoje não ter visto nenhum galo arraçado com urubu, sou forçado a curvar-me ante o peso dos depoimentos escutados. Não entendo nada de galos de briga e nunca compareci à, segundo me dizem, internacionalmente famosa rinha da Misericórdia, mas não posso duvidar da palavra de cavalheiros como meu falecido primo Zé de Neco, que tinha muita paciência comigo e sempre repetia explicações e histórias sobre o papel do urubu nesse controvertido esporte.


Não é qualquer urubu que cruza com galinhas de briga. Não tanto pela galinha, cuja reputação de mentalidade avançada e liberalidade de costumes é conhecida e mesmo invejada universalmente, mas pelo urubu. Ao contrário do que se supõe, o urubu come carniça, sim, mas é cheio de não-me-toques e dá até o que pensar aos que filosofam sobre a natureza humana, pois é voz geral que ele morre de nojo de gente viva e o principal problema em capturar um filhote não é a resistência dos pais ou a dificuldade de acesso a um ninho, mas a circunstância de que o filhote chega a ter engulhos só por se aproximar de uma pessoa. Ganhar a confiança dele, então, é quase impossível, assim como não são raros aqueles que, defrontados com a iminência de consórcio carnal com uma galinha, escolhem uma vida de estrito celibato.


Mas a persistência dos criadores acaba por triunfar e há exemplos célebres de grandes êxitos nesse delicado terreno, como o lendário Negão da Gameleira, dois terços de galinha de briga e um terço de urubu, que jamais perdeu uma briga e se notabilizou não apenas pelos dotes de combatente como pela malandragem própria da espécie. Até golpes de capoeira Negão aplicava e se fingia de mole, rondando o adversário como quem estava pronto para abandonar a liça, até que este se distraía e recebia uma saraivada fatal de malvadezas urubuzais, que o reduziam a pó de pirlimpimpim. Morreu de morte natural e cercado de glória e comentam que sua bem adornada tumba, situada em algum lugar nas cercanias de Bom Despacho, é até hoje reverenciada por admiradores saudosos de seus desempenhos inesquecíveis.


O finado Sete Ratos, Deus o tenha, me assegurou haver assistido, não uma mas diversas vezes, a enlaces eróticos entre caramurus, ferozes enguias que não se destacam pela fineza de trato, e jararacas. “Chega a ser bonito de apreciar”, me contava Sete Ratos. “O caramuru não baba e geme porque peixe não baba e somente umas três qualidades gemem, mas fecha os olhos e os dois ficam enroscadinhos o dia todo, parecendo coisa de artista da televisão, emboramente com menas safadagem.” Como observei, nunca vi um galobu e muito menos topei com um jararamuru, mas Sete Ratos não mentia, exceto no peso dos peixes que vendia, só que ninguém é perfeito e essa matéria de peso de peixe não pode ser julgada por leigos - e Sete Ratos, como os médicos, não discutia com leigos.


Dir-se-ia que, nesta curta estada que, ai de mim, já chega ao final, não haveria mais novidades para meus ouvidos calejados, mas o acaso, essa poderosa força que desempenha tão marcante papel nos avanços da ciência, de novo se manifestou, através de Barrichello, o caramujo gigante que encontramos aqui. Ele já era uma presença habitual, quando de repente sumiu. Mistério e preocupação, até que Xepa, em tertúlia no bar de Espanha, esclareceu a situação. Ele mesmo, Xepa, havia providenciado o sumiço. Tratava-se de perigosíssimo elemento, um de cujos prováveis primos foi responsável por grave escândalo recente.


Poupo à sensibilidade dos leitores os chocantes pormenores da história. Basta que conte que um desses caramujos se aproveitou do descuido de uma visitante da ilha e a engravidou. É isto mesmo que vocês acabam de ler, a distraída emprenhou do caramujo. Ninguém suspeitou, porque gravidez de caramujo é discreta e praticamente só se nota na délivrance. E não nasce apenas um caramujo, mas várias dezenas. A infortunada parturiente deu à luz uma infinidade de caramujinhos, durante mais de um dia de estupefação e revolta no seio da família ultrajada. “Pessoalmente, não tenho nada contra Barrichello e não matei, só dei um carreirão que durou de segunda a quarta”, disse Xepa. “Mas paga o justo pelo pecador e, com um parente dele cometendo essa indecência, achei que não ficava bem para uma pessoa de sua posição admitir um bicho daqueles em casa. Tive de concordar, mas também sou obrigado a levar em conta a opinião emitida por Jacó Branco, um dos ouvintes da narrativa.


- Está certo que esse caracol não agiu bem - disse Jacó. - Mas a verdade é que ele prestou um serviço ao mulherio que vem passear na ilha. Quer brincar, esteja à vontade, mas saiba que, se der sopa, o itaparicano toma a sopa. Atenção, pais de família, quem avisa amigo é, se lembrem do caracol.




O Globo (Rio de Janeiro) em 08/02/2004

O Globo (Rio de Janeiro) em, 08/02/2004