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A entrevista

 

Foi aos poucos. Ela veio me entrevistar, para falar a verdade, eu havia esquecido o compromisso. Ia pedir desculpa por demorar tanto no caminho do meu gabinete para a sala onde raramente tenho visitas. Ela me recebeu de costas, desprezando olhar a Lagoa onde moro há vinte e tantos anos.

Não parecia estar me esperando, embora a iniciativa do encontro tenha sido dela.

Cheguei de mansinho, pisando devagar, para ter tempo de examinar neutramente a visitante. Ela não olhava a Lagoa, como todos os visitantes fazem. Estava endireitando um quadro não muito grande que ficara meio torto na parede, um quadro antigo, do século 18, de autor desconhecido, comprado num antiquário de uma rua que dava para a Piazza di Spagna, em Roma.

Eu nunca reparara que o quadro estava torto, mas estranhei que uma pessoa que não me conhecia nem nunca entrara em meu apartamento, embora fosse uma profissional que ali estava a trabalho, preferisse endireitar um quadro que não era dela numa parede que também não era dela –provavelmente de má vontade, pela pouca importância do entrevistado.

Ao dar comigo, finalmente olhou a Lagoa, onde um barco de corrida, solitário, passava em frente da minha varanda. Ela me fez a primeira pergunta: "Gosta desses barcos?" Respondi que sim, disse por que: "Eles são da cor dos violinos".

Parece que ela estranhou aquela frase e comentou, mais para si do que para mim, repetindo: "É. São da cor dos violinos".

Sentamos no sofá, frente a frente. Ela abriu um caderno de notas e apanhou uma caneta da bolsa que parecia a caverna de Ali Babá, cheia de ouro e mistérios. Esperei pela primeira pergunta. Ela fechou o caderno, guardou a caneta. E disse: "Não preciso perguntar mais nada. A entrevista já foi feita". 

Folha de São Paulo (RJ), 08/09/2015