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E assim era e foi

 

Como base primeira e mais forte da memória, costuma a infância povoar, com sua mistura de encanto, mistério e medo, uma boa parte das narrativas que o homem faz para inventar a vida. Ou entendê-la. Quem reler o livro de James Joyce, "Retrato do artista quando jovem", descobrirá (às vezes, a primeira leitura não é suficiente para tanto) o muito que se concentra nos movimentos iniciais do corpo e da mente jovens, em busca do entendimento de si mesmos e do resto do mundo. As palavras do começo da história são claramente infantis e fazem pensar que o livro se destina a crianças (o que não deixa de ser verdade). Ei-las:


"Certa vez - e que linda vez que isso foi! - vinha uma vaquinha pela estrada abaixo, fazendo muu! E essa vaquinha, que vinha pela estrada abaixo fazendo muu!, encontrou um amor de menino chamado Pequerrucho Fuça-Fuça..."


Joyce informa então que essa era a história que o pai lhe contava, e explica:


"Ele era o Pequerrucho Fuça-Fuça que tinha encontrado a vaquinha que fazia muu! Descendo a estrada onde morava Betty Byrne, a menina que vendia confeitos de limão".


Os mais diferentes mestres do romance - digamos, Thomas Hardy e Marcel Proust - colocam já na infância o cosmo inteiro que obrigará seus personagens principais à dura missão de interpretar o mundo. No "A la recherche", o narrador começa por dizer: "Durante muito tempo, deitava-me cedo. Às vezes, nem a vela se extinguia, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: "Durmo". Em "Judas o obscuro", o menino Jude, aos 11 anos de sua idade, sofre com o afastamento do professor Phillotson e, nos primeiros diálogos, mostra o seu excesso de sensibilidade.


No belo romance de Helena Parente Cunha, narradora como ninguém neste País, "As claras manhãs de Barra Clara", é na infância que ela vai buscar o significado geral das coisas. Ou inventá-lo, o que dá no mesmo resultado que é tornar o pensamento mais claro e mais fecundo, além de provocar um avanço na humanização das gentes.


A infância da romancista brasileira é o bairro de Salvador, a Barra Clara dos anos 30 e 40. Havia a rua do bonde. Havia a praia. Havia a Igreja da Senhora Santana, havia o Colégio das Freiras para as meninas e a Escola de Dona Avelina para os meninos. No Colégio das Freiras trabalhava e morava Mãe Donana. Era quem trazia as crianças do bairro para a luz do dia, era quem tratava dos ferimentos do corpo e da alma.


A memória do romancista, disse Proust numa entrevista de 1913, não é apenas a "memória voluntária", isto é, "a memória exercida somente pela inteligência e a vista", que nos dá "sombras falsas do passado", mas um perfume, um gesto na língua ou um simples odor podem levantar um passado inteiro, cheio de significações, capaz de insuflar momentos de iluminação no escuro do caminho.


Foi assim que o simples gosto de um bolo chamado "Madeleine" deu nova e mais forte realidade a flores e jardins antigos, a toda a cidade de Combray e seus arredores, às casas e à igreja, tudo saindo, solicitamente, de uma xícara de chá.


Dona de sua linguagem e de sua narrativa, Helena Parente Cunha domina também a clareza no uso das palavras, pois é preciso ter clareza mesmo nas mais sofisticadas formas de narrar (poucos escritores são tão claros como Kafka, apesar das muitas metamorfoses de seu contato com a realidade).


No romance de agora principalmente, com as "claras" manhãs de Barra "Clara", ergue a narrativa um mundo de absoluta visibilidade, em cenas descritas sem literatice e nos tons rijos das mudanças que atingem tudo o que existe, a partir da raça humana que pensa mandar na Terra.


Helena Parente Cunha estende seu território e, ao fazê-lo, utiliza os instrumentos mais apropriados de sua linguagem. Oferece-nos o chão e sua gente com a sabedoria de quem sabe que as palavras podem ir além de si mesmas. Pega primeiro nos elementos naturais, na claridade do céu diáfano, em nuvens que traçavam desenhos no céu, na magia do que muda a cada instante.


Sobre seu espaço, coloca a narradora as crianças, donas de tudo, os pescadores que, às vezes, faltavam à pesca e, antes de tudo, Mãe Donana ("Sua bênção, Mãe Donana"). Mãe Donana é enfermeira, trata de todo mundo, "quando morrer vai direto para o céu e vai virar santa". Mas a mudança está nos interstícios de tudo, mudam as pessoas, algumas até morrem, afinal como chegam as crianças a Barra Clara?, um primo sabe como, não é numa cegonha, mas não diz quando.


Todo um tempo se concentra naquele espaço do Brasil e nele está o pulsar do País e a inquietação de uma época inteira. Ao criar a personagem-mor do bairro, Mãe Donana, a romancista Helena Parente Cunha dá coesão a seu mundo e, através dele, aos pedaços de terra e de mar que se sucedem para formar o resto do chão em que vivem as gentes.


Mãe Donana é mostrada com a mesma clareza que distingue a narradora. Vemo-la em sua labuta, não apenas de enfermeira, mas de guia, de mestra. Um dos pontos altos do romance é a seqüência do nascimento dos cãezinhos de Lulu, que Mãe Donana transformou numa aula, nas flores e nos frutos que repetem o ciclo, através de novas sementes e novas raízes.


A guerra na Europa toma conta dos assuntos de Barra Clara, com intervalos descritivos em que narradora se interroga e repete as perguntas que fazemos há milênios: "Onde tudo começou? a gema do ovo, o útero da mãe, embrião, vozes arcaicas, rituais e ciclos, o começo e o fim, de onde assim? como foi e era e é?" - na busca, na "recherche", com o mundo se transformando, ou não?, e a posição particular do bairro baiano, com seus orixás, sua mãe d'água, seus mistérios.


Só na última página do romance fica o leitor sabendo o nome da narradora, Heloísa, que dele não precisara até aquele instante da história, até o fim que se aproximava. O contraponto, inserido na parte final de alguns capítulos, completa o panorama do mundo e das escolhas, visto do bairro baiano.


Ao longo da macia decorrência de um pedaço de tempo e de chão ganhando uma existência própria, lega-nos Helena Parente Cunha um romance definitivo neste começo de um milênio. "As claras manhãs de Barra Clara", lançado pela Editora Mondrian na coleção "Anjos de Branco", é livro para ficar, na linhagem de uma ficção que exibe o ser humano a nu, na claridade e pureza de suas duas condições inarredáveis: a da liberdade e a da mudança.


"E assim era e foi".


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em 16/10/2002

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em, 16/10/2002