Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Dom Lucas, o apóstolo

Dom Lucas, o apóstolo

 

Tínhamos um apóstolo entre nós. Perdemo-lo. A missão apostolar de Dom Lucas Moreira Neves, exerceu-a ele na sua vida normal de sacerdote, mas também no haver levantado, nos seus escritos, a memória de sua terra e de seu povo. Memória é base, sem ela caem as estruturas que nos fazem gente. A memória ilumina a sombra, passa por cima da nossa temporalidade, país sem memória está morto, e não sabe. A memória, guardamo-la em pedra ou música, em pergaminhos, pinturas, pontes, castelos ou catedrais. Guardamo-la, principalmente, na palavra.


Pois foi na sua obra, falada e escrita, que Dom Lucas fixou aspectos essenciais da memória brasileira. Terras e pessoas, conquistas e problemas, acertos e erros, planos e olvidos, fracassos e exaltações - tudo repousa e ao mesmo tempo se agita nas análises e remembranças que Dom Lucas reuniu nos livros que publicou e nos sermões que fez.


Seu livro "A sarça ardente", por exemplo, analisa uma linguagem religiosa de âmbito nacional, que desenvolvemos e temos, o que nos insere na modernidade milenar do catolicismo que atravessa, na sua essencialidade humana, as modas acidentais que surgem e caem, aparecem e desaparecem.


Na realidade, Cristo é moderno também no sentido literal da palavra e dentro dos ciclos do avanço do homem pela história.


Foi meu amigo, o escritor ibô Chinua Achebe, da Nigéria, que me chamou a atenção para o relativamente pouco tempo decorrido de Cristo aos nossos dias. Falamos tanto em bilhões e trilhões que não nos damos conta de que, do começo de nossa era até este ano de 2002, decorreram menos de 800 mil dias e pouco mais de 800 milhões de horas. Não viveu, portanto, o homem, ainda, um milhão de dias a partir do nascimento em Belém cuja modernidade nos assalta a memória e a emoção a cada Natal.


Na palavra de Dom Lucas, está a vida cristã intimamente ligada ao dia-a-dia. Mostra-nos ele, na bela e clara limpidez de seu estilo, esta verdade: quando nos afastamos dos elementos comuns diários, insubstituíveis, que constituem a parte viva e renovável de uma existência concreta, corremos o perigo de perceber a vida inabstrato, necessariamente pura, inatingível, sem ligação efetiva com as experiências de cada hora, em que lutamos pelo amor, a caridade, a compaixão, mas sabendo que o mal existe.


No resgate da figura de seu pai, o maestro Telêmaco Victor Neves, mostrou o escritor Dom Lucas uma extraordinária precisão de palavras, ao relatar a vinda, para o Brasil, do açoriano Arcádio Bernardino, por sua vez pai de José Antonio Bernardino, pai de Telêmaco Victor, o maestro. A frase de Santo Agostinho "Bis orat qui cantat" ("quem canta reza duas vezes"), lembra a ligação profunda entre música e devoção, existente em muitas pequenas comunidades brasileiras que, do coro da igreja à banda, sempre dedicaram seu tempo a instrumentos musicais, ao canto e à orquestra.


Nesta crônica, cita Dom Lucas o Arcebispo-emérito de Uberaba, Dom Alexandre Gonçalves do Amaral, que impôs suas mãos na cerimônia da sagração sacerdotal de Dom Lucas Moreira Neves e que fora, no Seminário Maior de Belo Horizonte, professor de História Sacra do então seminarista que hoje escreve estas linhas.


Ao discorrer sobre "Vieira: o verbo a serviço do Verbo", Dom Lucas deixa, em nossa literatura, um ensaio do teor mais alto já escrito sobre o grande pregador. Quem quer haja percorrido os volumes dos Sermões completos de Vieira, nunca mais se livra da memória de suas palavras, de suas construções de frases, de sua eloqüência no analisar fosse o que fosse, de seu domínio do verbo que se deixava dominar pelo próprio Verbo. Escreve, a propósito, Dom Lucas: "É impossível não ceder à convicção de que jamais, em tempo algum, um outro pregador fez uso da língua portuguesa de modo tão portentoso. O portento está na escolha dos vocábulos.


Está também na força telúrica das imagens e alegorias. Está ora no lirismo, ora no despojamento da linguagem. Está na argumentação cerrada, na lógica e no raciocínio. Está no colorido, no bordado das frases, no apelo às emoções do ouvinte (ou do leitor). Está numa forma de reverência para com a Palavra de Deus.


Numa sorte de serviço que o verbo presta ao Verbo. "Dos nascidos nos anos 20, que se tornaram mais tarde padres católicos, dois se destacariam depois nos caminhos da Igreja. Um, polonês; o outro, brasileiro. Vindo ao mundo no intervalo entre as duas guerras mundiais do século, viveram o tempo das ditaduras na Europa e na América Latina, atravessaram o período maior da guerra fria, participaram das mudanças da Igreja a partir de João XXIII, e não há nada mais sintomático tenham estado os dois juntos, João Paulo II e Dom Lucas, no Vaticano, exatamente no momento em que a barca de Pedro ingressava em novo milênio.


Na crônica "O tempo, esse tesouro", estuda Dom Lucas a carta apostólica de João II, "Tertio Millennio Adveniente", que vem a ser um projeto rumo ao novo tempo. Expressões do Sumo Pontífice mencionam que o tempo é para nós "dom e mistério", "graça e responsabilidade". O homem transforma o tempo em história e, ao fazê-lo, justifica e dignifica sua caminhada e seu destino.


A esse respeito, diz Dom Lucas: "O tempo não é, portanto, uma fatalidade impiedosa e inelutável; é uma corrente de oportunidades dadas ao homem para se realizar: neste sentido, já a Bíblia ensinava que `há tempo para tudo, para juntar pedras e para atirá-las, para construir e para demolir, para amar e para odiar, para viver e para morrer...'"


Dentre suas reflexões sobre a educação, curva-se Dom Lucas sobre o papel educativo, pedagógico mesmo, que deve ser o da mídia. Pergunta: "... a nossa mídia - a que melhor conhecemos, a brasileira - educa? Ajuda a fazer emergir,de cada indivíduo, a pessoa humana integral que está dentro dele: faz crescer as faculdades espirituais mais íntimas dentro do equilíbrio e da harmonia?"


Questiona Dom Lucas ainda a função formadora dos meios de comunicação: a mídia não informa apenas; também forma e integra, assim, o setor maior da educação entre cujos objetivos se acham a informação e a formação. Explica: "Formar, no sentido mais profundo do termo, significa dar uma forma definida a alguém.


Quer dizer, concretamente, infundir numa pessoa referenciais seguras para seus juízos críticos. Critérios orientativos para o seu comportamento."


Toda a obra escrita por Dom Lucas Moreira Neves confirma seu autor como apóstolo, como um dos guias de nosso tempo, na sua necessária e inadiável tarefa de lutar pela humanização da sociedade humana.


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em 18/09/2002

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em, 18/09/2002