Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Dom Eugênio: Uma pomba guardou seu caixão

Dom Eugênio: Uma pomba guardou seu caixão

 

Com a morte de D. Eugênio,  a Igreja Católica  perdeu no Brasil o seu maior líder de todos os tempos. Sou muito suspeito para falar sobre ele, porque, entre outras coisas, nos conhecemos há  mais de 60 anos, como seu conterrâneo e  seu  contemporâneo, desde os comuns tempos da nossa mocidade, em Natal. Acompanhei de perto a sua escalada como sacerdote, desde os tempos de Seminarista, de  Padre, de Bispo, de Arcebispo e de  Cardeal.

A primeira imagem que dele guardo até hoje é a de um jovem seminarista de 17 anos, magrinho,  nascido na Cidade de Acari, a 220 km de Natal, em pleno Seridó, a região mais seca e árida do Nordeste. Vigário na cidade de Nova Cruz e auxiliar de Dom Marcolino Dantas, então Arcebispo de Natal, já demonstrando as suas preocupações com os flagelados da seca e já lançando seus projetos de Educação Rural, Educação de Base, Alfabetização de Adultos, Escolas Radiofônicas, Comunidades Eclesiais, Sindicato dos Camponeses e Pastoral da Terra. Ali ele já estava atraindo as atenções do Vaticano, que levaram o Papa Pio XII, em 1954, a promovê-lo a Bispo Diocesano.

Em 1964, foi transferido para Salvador, como Administrador Católico. Em 1969, o Papa Paulo Sexto colocou na sua cabeça o chapéu cardinalício. Ele tinha 48 anos  e era o mais jovem Cardeal do Vaticano.

Em 1971, com a morte de Dom Jaime Câmara, o mesmo Papa Paulo Sexto o designou para o Arcebispado do Rio de Janeiro, onde, com Dom Helder, ampliou o Banco e a Feira da Providência; criou as "Casas de Acolhida", para homens, mães, jovens e bebês aidéticos e também para  prostitutas. Lançou as Pastorais dos meninos de rua e dos presidiários.

Amigo pessoal e confidente do Papa João Paulo II, Dom Eugênio conseguiu trazê-lo três vezes ao Rio de Janeiro.

Nas sucessivas vagas de Dom Aquino Corrêa, de Dom Silvério Pimenta, de Dom Marcos Barbosa, de Dom Lucas Neves e do Padre Fernando Bastos de Ávila, grupos de Acadêmicos importantes, diversas vezes,  solicitaram-lhe que aceitasse ser candidato a Academia Brasileira de Letras. Humildemente, agradecia os convites, que recusava sempre, argumentando que era apenas um padre, sem pretensões de ser um escritor.

Devo a Dom Eugênio algumas dívidas que, agora, com sua morte, já não mais saldarei, como a da minha vinda de Natal para trabalhar no Rio, no "Correio da Noite"; como a minha primeira viagem a Roma no Ano Santo de 1950; e até há pouco tempo, como a escolha de uma área para eu pagar uma promessa de construir em Natal uma Igreja em homenagem a Nossa Senhora de Fátima. Devo-lhe a celebração, em sua capela no Palácio São Joaquim, de uma Missa em Ação de Graças, no dia em que me empossei na Academia.

Mas, um dos meus maiores débitos com ele data exatamente do dia em que atendi o telefonema de um jornalista, meu companheiro no  Conselho Administrativo da A. B. I. Líder comunista, ele tivera um filho de 15 anos, desaparecido de circulação em plena ditadura. Aflito, o pai recorreu a mim, sabedor da minha amizade com Dom Eugênio, que me garantiu:

- Murilo. Diga ao seu amigo que fique tranqüilo e deixe o filho por minha conta, porque vou agir imediatamente junto ao General Siseno.

Logo em seguida, Dom Eugênio descobriu o rapaz deitado no chão de uma cela do DOI-CODI e conseguiu libertá-lo naquele mesmo dia.

Noutra tarde, Dom Eugênio recebeu o telefonema de um coronel, do Comando Militar do Leste, que lhe fez um insólito apelo:

- Precisamos esconder 15  presos políticos, que não podem ser molestados, porque são muito importantes para nós e temos interesse em que nada lhes aconteça. Precisamos protegê-los.

Dom Eugênio respondeu:

- Olha aqui, Coronel. Temos esses esconderijos justamente para evitar que os nossos amigos sejam presos e seviciados.  Mas, uma vez que os seus protegidos já estão presos e precisam da nossa proteção, pode contar com ela.

Esse foi mais um trabalho inteligente e subterrâneo, que D. Eugênio realizou durante 20 anos, sem espalhafatos ou exibicionismos, longe dos holofotes da televisão e dos jornais. E explicava-me: 

- Sou um pastor que tem o dever de velar por todos os seus rebanhos, sejam eles católicos, ateus, evangélicos ou comunistas.  

Esse Cardeal, como um grande brasileiro e no recato de uma vida impecável, ministrou diariamente lições milenares do seu Evangelho. No Sumaré, promoveu nove encontros com intelectuais de direita e de esquerda. Na juventude, ajudando a fundação de sindicatos, foi considerado comunista. Quando, depois, abriu um crédito de confiança no governo, foi tido como reacionário.

Dele, disse o Acadêmico  João Paulo Horta:

- Ele não estava na vida para brincar".

No seu sepultamento,   assisti quando uma pomba branca pousou durante horas sobre o seu caixão, como se tivesse sido enviada por Deus,  para guardá-lo.   Bem haja o Rio de Janeiro, pelo admirável pastor que guiou suas ovelhas, durante mais de 30 anos. Bem haja a sua humilde cidade potiguar de  Acarí, que ele tanto cultivou e que ela agora tanto cultivará, com muita vaidade e saudade, o querido filho  que lá nasceu. Bem haja o nosso comum Rio Grande do Norte, ao qual ele sempre foi tão fiel e tão grato. Bem haja o Brasil inteiro, pelo exemplo de prelado correto modesto recatado sensato  discreto  habilidoso  pragmático  conciliador  religioso e virtuoso,  um motivo de justo orgulho, para todos quantos, como eu, tivemos a suprema felicidade de conviver com ele e  de amá-lo para sempre.

Tribuna do Norte (RN), 5/8/2012