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Dois centenários

 

Este mês de novembro marca dois centenários importantes na literatura. Amanhã, temos o centenário de nascimento de Rachel de Queiroz; no dia 20, o centenário de falecimento de Liev Tolstói (ou Léon Tolstói, ou Leão Tolstoi, ou Leo Tolstoy, ou Lev Tolstói — as transcrições gráficas de seu nome russo variam). Aparentemente, duas figuras muito diferentes: um homem e uma mulher, um eslavo e uma brasileira; mas há, entre eles, coisas em comum, a começar pela coincidência temporal entre a morte de Tolstói e o nascimento de Rachel. É uma coincidência significativa, porque Tolstói foi fundamentalmente um escritor do século 19, uma época em que a literatura de ficção abordava as grandes questões da existência humana, cumprindo um papel que depois seria atribuído à psicologia e a sociologia, então ainda engatinhando.

Já a literatura de Rachel de Queiroz correspondia ao começo do século 20, uma época convulsionada, que viu a Primeira Guerra e a Revolução Russa, a ascensão do comunismo e o progressivo engajamento dos intelectuais, que, no Brasil, denunciavam a miséria e a desigualdade por meio da literatura regionalista, da qual O Quinze, de Rachel, obra que descreve a terrível seca de 1915, é um exemplo.

Os dois amavam o campo. Yasnaya Polyana, a propriedade em que Tolstói nasceu, era para ele um verdadeiro refúgio, como o foi, para Rachel, a fazenda Não me Deixes, no Ceará. Rachel era professora de formação; Tolstói criou, em Yasnaia Polyana, uma escola para filhos de camponeses, caracterizada por um ensino liberal, para a qual ele mesmo preparava o material didático.

Os dois eram rebeldes. Tolstói, de início um boêmio (mulherengo, jogava e bebia muito), experimentou uma espécie de crise moral. Já escritor famoso, adotou o estilo de vida simples dos camponeses, usava roupas modestas, deixou de beber e de fumar, tornou-se vegetariano. Criticava (mas não como marxista ou comunista) a propriedade privada, e tornou-se um pacifista militante, difundindo suas ideias em panfletos, ensaios e peças teatrais; doava seus direitos autorais para obras de assistência social. Chegou a ser vigiado pela polícia do czar, foi excomungado pela Igreja Ortodoxa russa, e acabou deixando a família, com quem tinha brigas constantes. Seu prestígio era tão grande, que mesmo o regime comunista continuou a prestigiá-lo.

Já Rachel de Queiroz, que muito cedo passou a conviver com escritores de esquerda, estava entre os fundadores do Partido Comunista cearense e foi fichada como “agitadora comunista” pela polícia política. Mas, como outros intelectuais, rompeu com o comunismo num episódio tão célebre quanto pitoresco. Rachel havia terminado João Miguel, seu segundo romance; como era hábito, então deveria submeter os originais ao julgamento do Partido Comunista, que daria a necessária “orientação” para transformar a obra em instrumento de agitação política. Acontece que, no romance, um operário mata outro, o que o PC considerou um absurdo; operário podia matar o patrão, não um companheiro. Na reunião em que o assunto foi debatido, Rachel fingiu aceitar a crítica; pegou os originais, declarou que não via no partido autoridade para censurar seu trabalho, e fugiu do local “em desabalada carreira”, para não mais voltar.

Em política, acabou caindo no extremo oposto; apoiou o golpe contra o governo João Goulart, que pretendia, segundo a escritora e outros, instituir uma ditadura sindicalista. Muitas reuniões dos conspiradores foram feitas em seu apartamento no Rio; aliás, o primeiro presidente militar, Humberto de Alencar Castello Branco, era seu primo (os dois tinham parentesco com José de Alencar). Nesse governo, representou o Brasil na ONU e passou a integrar o Conselho Federal de Cultura. Mas depois deu-se conta dos característicos ditatoriais do regime e retirou seu apoio ao governo autoritário.

Finalmente, é preciso dizer que os dois foram escritores de imenso sucesso, um sucesso reforçado, no caso de Rachel, por sua atividade jornalística, que proporcionava um excelente meio de expressão para sua personalidade afetiva, empática. A literatura de Tolstói tornou-se patrimônio universal, suas frases são constantemente repetidas e uma delas, “Canta tua aldeia e serás universal”, aplica-se à obra de Rachel que conseguiu, sobretudo com O Quinze, colocar o Nordeste brasileiro no mapa literário do mundo.

Correio Braziliense, 16/11/2010