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D. Aloísio, o pastor da justiça

 

Deixou-nos D. Aloísio Lorscheider, encerrando o ciclo em que a Igreja do Brasil foi mais longe, na busca da encarnação em nosso tempo, pedida pelo Vaticano II. Foi a expressão desta mensagem “versus populo”, no trazer a esperança efetiva, concreta, aos desmunidos; no dar a voz aos sem-voz, vitimados pela violência, da tortura à fome; no entender que a injustiça pode ser estrutural e sua remoção não implica, apenas, a “boa vontade” dos homens, mas numa efetiva política de mudança que vá à própria conformação da vida coletiva.


Seria fácil, hoje, envolver todo este imperativo numa visão acrítica do chamado empenho liberador, que não se identifica, necessariamente, a uma teologia, mas se desliga da simples idéia da promoção tal como numa visão sacralizada do progressismo, característica da doutrina social, antes do Vaticano II.


As perplexidades, ainda em Aparecida, sobre uma visão retrospectiva da Igreja pós-conciliar colheram as guinadas pontifícias, de Paulo VI a João Paulo II e, agora, a Bento XVI, na reflexão sobre o sentido do missionarismo da modernidade e do humanismo em nosso tempo. A CNBB de D. Aloísio e, depois, de D. Ivo e D. Luciano, traduziam, ao mesmo tempo, um tempo de entrega do trabalho do pastor nas muitas faces de um efetivo sentire cum Ecclesia.


A Igreja no Brasil da última trintena saiu do compromisso com o sistema e o statu quo, no identificar a mensagem da fé como da cristandade. Foi à denúncia do regime militar, que se via como portador da herança católica, frente à radicalidade marxista. Empenhou-se, sobretudo, na virada do século, no entender o quanto a exigência do desenvolvimento, como uma política pública, ia ao fundo daquela mudança, e se transformava na prática de um bem comum que se associaria à palavra pastoral.


Renunciava-se às perspectivas tradicionais do que cabe ao poder ou à fé, mudando por inteiro a visão ainda condizente com o golpe de 64, de um catolicismo de retorno às sacristias, ao mesmo tempo que credor de favores do Estado, como credo dominante do país. D. Aloísio herdava a palavra fundadora de D. Helder, mas já dentro do recado de Paulo VI, de Igreja Mãe e Mestra, deixando a pastoral à inspiração mais larga da prática transformadora, onde o social ganhasse, por si mesmo, a libertação, sem se conter numa teologia.


A amplitude do magistério de D. Aloísio, no país de maior peso do futuro do catolicismo, ganharia uma dimensão universal, tanto os primeiros papados pós-conciliares abriam-se à dialética deste encontro atrasado da fé com a modernidade, e à inevitável opção entre avançar sempre, ou reencontrar primeiro o corpo da fé reptado, pelo imperativo do testemunho. Não sem razão, à seqüência de Paulo VI, o cardeal brasileiro, e gaúcho, na própria intuição de João Paulo I, foi pensado como o primeiro possível sucessor de São Pedro, fora da matriz européia.


A volta à tradição e ao sacramental do encontro dos homens, prévia à alteração da sociedade secular, levaria, naturalmente, ao confronto profético das duas mensagens, no encontro de Puebla. Foi quando D. Aloísio, Presidente do episcopado latino-americano, reiterou, frente a João Paulo II, o caráter estrutural da injustiça nestes nossos antigos países coloniais, e do quanto a pastoral do desenvolvimento envolvia agendas concretas e medidas objetivas, para além da mera repetição de seus imperativos éticos. Acolhida, finalmente, a premissa, no México, mostraria a dificuldade ainda de prosperar no Vaticano ao requestionamento de São Domingos, ainda repetido em Aparecida.


Na afabilidade perene, trazida à última modéstia, D. Aloísio encarnou o recado dado deste “mais ser do homem todo e de todos os homens”, que não tolera a marginalidade social, e pede por uma Igreja da inclusão mais do que da simples promoção. Contrasta, na sua morte, agora, com a palavra de D. Cappio, tão estranhamente incisivo, após o jejum, numa inquietante retomada de uma pregação à margem do recado do “bem comum”, ciosa dos imediatismos contra o horizonte largo da mudança. A estrutural, para o abate real da injustiça, que tem em D. Aloísio o seu pastor, para ser o profeta da esperança.


Jornal do Commercio (RJ) 28/12/2007

Jornal do Commercio (RJ), 28/12/2007