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Culto aos mortos

 

Engraçado, a gente. Do que tem medo, escarnece e põe nome feio. Morte, por exemplo. Verdade que a própria palavra morte, não sendo bela, tem, contudo a sua dignidade; tanto ela como as que dependem do seu radical: morto, mortal, mortalidade. Porém, todos os demais vocábulos que com a morte se relacionem, quando não são o simplesmente horrível, são ligeira ou pesadamente sobre o grotesco. Defunto, cemitério, cadáver, esqueleto, caveira, cova, sepultura, múmia, embalsamar, velório, funeral, moribundo, ossuário, verme, formol, fantasma, necrotério, viúvo e a mais repugnante de todas: papa-defunto. E não adianta apelar para as formas eruditas, porque ainda fica pior: necrópole, sarcófago, inumar, exumar, necrológio, exéquias, parca, féretro.


Aliás, é natural. A gente escarnece da morte e dos seus derivados como escarnece do Diabo: vale como único recurso do medo, que a zombaria é uma defesa. Já falar mal é outra coisa. Fala-se mal da vida, sim, mas de boca cheia, assim como se fala mal de amante muito amada; fala-se mal com carinho, fala-se mal para não gabar. Todos acham bom viver, de qualquer jeito. Até sofrendo, sangrando, chorando - mas vivendo!


Ai, a hipocrisia do culto aos mortos! No fundo, o que os homens desejam unicamente em relação aos mortos é esquecê-los. Foi preciso que a Igreja usasse de toda a sua autoridade e tradição a fim de impor um dia dedicado aos finados, o culto e as orações pelos fiéis defuntos, ou almas do purgatório. E se os mortos não tivessem esse dia intransferível no calendário, será que realmente filhos e parentes, viúvos e amantes se lembrariam pelo menos uma vez por ano, e cuidariam desses amores enterrados?


O fato é que nenhum de nós passa por perto ou entra num cemitério sem sofrer aquela picada aguda do sentimento de culpa. Poderá haver nada mais abandonado? Se é cemitério pobre, o capim e os carrapichos tomam conta, encobrem as cruzes de madeira que se desfazem devagarinho, as trepadeiras bravas se enfiam pelas fendas da alvenaria ordinária. E quando o cemitério é rico, a tristeza ainda é pior, porque ao abandono se alia à pretensão; e não há, para consolo, aquela insolência de verde brotando da terra. Ali reina o cimento e a pedra fria. O mármore riscado de chuva, o bronze azinhavrado dos anjos chorões, as capelas cheirando a decomposição, os arbustos magros, as plantas malcuidadas.


Lá vai um enterro de homem rico, ou homem grande - quase sempre as duas coisas, porque é muito difícil um grande que não se arranje para ser rico, ou um rico para ser grande. O caixão é de ouro ou o que o ouro vale, as palmas negras tremem ao vento, o acompanhamento mede-se por quilômetros de automóveis, e as coroas foram oferecidas em tal número que vários carros navegam atrás do carro-chefe, arrastando-se, esmagados pelo peso de tanta flor.


Na necrópole - (pois rico se enterra é em necrópole) estenderam um toldo sobre a cova aberta - que não é bem cova, é uma gaveta de cimento, já que outra idiossincrasia de rico é ter medo do contato rude da terra, nossa mãe; debaixo do toldo, carpidores e parentes estarão a cômodo para declamar os seus discursos, livres do sol ou da chuva. E os necrológios tremem no ar, como as plumas negras do carro de primeira classe, o padre joga água benta sobre a carne dada aos vermes, enquanto encomenda a alma ao terrível juiz, e as mulheres choram nos lenços, e depois começa o balé da colher de cal: cada um desfila em passo miúdo, estende o braço, colher na cal, colher na cova, passa adiante, vem outro, colher na cal - pode levar horas, quanto mais, mais impressiona. Custa, mas afinal tem um fim - graças a Deus, tudo no mundo tem um fim. E nesse fim se dissolve o cortejo, e cada um volta para sua casa, comer bem e dormir bem, retemperando as forças para o outro ritual sinistro que é a parte social da missa do sétimo dia. Deixe porém passar esse sétimo dia e então volte ao cemitério - quero dizer, a necrópole. E veja que cenário desolado. Parece até, Deus que me perdoe, mas parece um terreno baldio de subúrbio, de onde um circo se mudou. Lá estão os buracos no chão, dos tornos que seguravam o toldo. Os montes espisoteados de terra remexida, os papéis amarrotados que envolviam os ramos. E, pior de tudo, o amontoado sinistro das coroas que apodrecem ao sol, mostrando as entranhas de arame, de lata e taboca, e de onde pendem, crestados, os lírios irreconhecíveis, as rosas despetaladas, as saudades e as orquídeas negras como insetos mortos, as fitas em farrapos de onde as letras douradas já caíram. Quer dizer que todo aquele luxo e aqueles carinhos não eram pelo morto, coitadinho, que ali ficou largado e esquecido, era só mesmo para impressionar os vivos.


Comovente, em verdade, é inteirinho de anjo pobre. O caixão de boneca, o menininho morto, de faces pintadas, mortalha de cetim, cachinhos enrolados, como se fosse sair na procissão. As moças carregando o leve fardo vestem-se de branco e não ousam chorar que faz mal para o anjinho. Quase nunca se vê a mãe - mãe não gosta de acompanhar enterro. Tem medo do choque da terra em cima das tábuas finas. E, depois, mãe desolada não precisa ir a cemitério.


Quem tem um filho morto, podem enterrá-lo no chão, podem afundá-lo no mar, podem virá-lo em cinza, escondê-lo. Nada disso o afasta. A mãe sabe muito bem que a cova verdadeira do filhinho defunto é dentro do peito dela, no lugar onde havia o coração.




O Estado de São Paulo (São Paulo - SP) em 09/11/2002

O Estado de São Paulo (São Paulo - SP) em, 09/11/2002