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Critérios geram criaturas

 

Na campanha eleitoral, uma candidata a deputada aparecia brevemente na tela e se limitava a usar o reduzido tempo diante da câmera para dizer seu nome, número e anunciar sua plataforma em uma exclamação: “Contra a meritocracia!” Evidentemente, se orgulhava de sua posição, alardeada ao querer exibir seu melhor lado e ganhar votos. Tal opinião, bastante difundida, não me sai da lembrança. Lembro esse equívoco, vendo a que ponto chega um país com enorme potencial, quando cargos de responsabilidade são ocupados por outros critérios que não o mérito.

Há sociedades que cultuam o merecimento e reconhecem seu valor. Uma das marcas que caracterizam premiações é a expressão “Honra ao mérito”. Votos de que o merecimento seja coberto de honrarias. Mas deturpações distorcem a realidade de tal modo que hoje, ao ouvir a expressão palavra de honra, há quem execre esse conceito, como se devesse ser evitado, por elitista e metido a aristocrático. Isso não despreza apenas a rejeição da mentira. Também confunde honradez e honraria, como se o ideal de querer ser uma pessoa honrada se reduzisse à mera busca de títulos e privilégios.

Essas distorções vão além da bagunça semântica, a insistir no bordão “ninguém merece”. Pelo contrário, todos merecem. Só que cada um tem seu próprio merecimento, as pessoas não são iguais. Essencial é que tenham oportunidades iguais numa democracia — daí a imensa importância da educação, da boa qualidade da escola pública, instituição que deve exercer a função igualadora por excelência. E ser completada por políticas inteligentes de compensação, que ajudem a equilibrar desvantagens iniciais de uns frente a outros.

Procurando entender quem se diz contra a meritocracia, imagino que talvez a pessoa pretendesse se afirmar contra a desigualdade. Mas as duas palavras não são sinônimas, nem de longe. Ao ser erigida em plataforma, a recusa do mérito impõe uma reflexão. E no atual momento brasileiro, cumpre a cada um de nós refletir sobre tudo o que possa ter nos trazido até aqui. Para tentar compreender e corrigir.

Bons funcionários de carreira devem ser aprovados em concursos para aferir seu mérito e qualificação para os cargos que ocupam. Se o ideal para alguns é que esse mérito não seja medido nem respeitado, isso significa que os critérios de seleção para preenchimentos de cargos serão outros: compadrio, clientelismo, afinidade ideológica ou religiosa, retribuição de favores, nepotismo, coitadismo, paternalismo, aparelhamento partidário, toma lá dá cá... Mesmo que eventualmente se disfarcem de gratidão, solidariedade ou proteção aos desfavorecidos (bondades essas pagas do bolso alheio, com nossos impostos), não há como fugir à constatação: um processo de escolha neles baseado não é justo nem correto. Não é bom para o país e a população.

Com a recusa da meritocracia, a cobrança de eficiência e de capacidade para o desempenho da função passa a ser varrida para longe. O mínimo que um cidadão espera quando vai ao médico é que o profissional que vem atendê-lo tenha estudado e adquirido capacidade para merecer fazê-lo. Vamos nos entregar a ele em confiança, às vezes até sob o efeito de anestesia. Da mesma forma, ao entrar num avião, vamos na certeza de que o piloto sabe perfeitamente operar aquela máquina e, por isso, merece aquele emprego.

Como imaginar que um sistema de educação pública possa formar as novas gerações, se estiver nas mãos de quem foi nomeado só porque era parente de um cabo eleitoral ou usava o jargão correto do momento, com todas as suas palavras de ordem? É igualmente inconcebível aceitar que administradores públicos não precisem saber administrar, que legisladores não precisem saber legislar, que a economia possa ser entregue a quem não respeita números, que para ocupar um cargo basta ser do partido da vez ou amigo dos homens, e por aí afora.

É claro que a questão é complexa. O mérito não pode se medir apenas pelo êxito, sobretudo se tomado em termos financeiros. Nem pela origem familiar, berço ou sobrenome. Ter se dado bem não qualifica ninguém, nem é sinônimo de merecimento. Há muita gente talentosa e capaz a quem a vida negou oportunidades de desenvolver seu potencial. Acaso, azares, trapaças da sorte, roda da fortuna, variados elementos aleatórios e randômicos interferem e influem.

A certeza do mérito pode ser impossível. Mas caminhar na direção de sua busca faz sentido. Sobretudo na política e na administração pública, que atingem toda uma nação. Outros critérios são mais sujeitos a erro. Podem gerar criaturas como essas que nos assolam. O mérito deve ser como as estrelas para os antigos navegadores. Não se chegava a elas, mas serviam de guia para orientar a embarcação.

Talvez grande parte do momento atual tenha a ver com o abandono desse princípio, levando a rejeitar quem merece, para escolher a utilidade imediata de quem finge melhor, é do mesmo credo ou usa certa linguagem. Acaba dando nisso que estamos vivendo.

O Globo, 17/10/2015