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A criatividade num boteco do Leblon

 

Tu soube da ceguinha hoje, antes de você chegar? Foi espetacular.


iiiieiiii - Que ceguinha, aquela que faz ronda aqui toda semana? Mas eu já manjo ela há muito tempo, não é novidade nenhuma. Que foi que ela fez desta vez? Chutou a canela do Quixadá novamente? Pra mim esse nem foi o maior feito dela. Acho que todo mundo concorda que o maior feito foi quando negaram esmola e ela derrubou a mesa dos caras.


- Não, agora ela se aprimorou, já entrou no lucro mesmo. Agora ela espera que o freguês tire a carteira e a guia dela leva a carteira. Levaram duas, cara, tiveram competência pra levar duas, uma atrás da outra.


- E ninguém conseguiu pegar?


- Como é que pega? Sem enxergar nada, ela corre aqui pelo Leblon melhor do que quem tem a visão perfeita, ela é campeã!


- Não brinca, daqui a pouco tu vai me dizer que é fã dela.


- Mas eu sou, eu sou! Tu é que tem uma noção limitada das coisas, tu tem de perceber as coisas dentro da perspectiva brasileira, tu é bitolado. Presta atenção. Essa ceguinha é feia, pobre, discriminada, frustrada, tudo de ruim, pode se dizer. E, no entanto, o que é que ela faz?


- Ela trata tudo mundo mal, agride as pessoas, é uma criminosa.


- Dentro de um ponto de vista limitado, sim. Mas, dentro de um ponto de vista mais aberto, não. Ela é uma pioneira, uma gênia. Ela enfrenta limitações que teriam derrotado muita gente em melhores condições e conquistou uma posição de destaque. Tu vai negar que ela tem uma posição de destaque?


- Mas destaque negativo, não é coisa pra causar admiração.


- Isso é por causa de seu condicionamento. Mas, na nossa sociedade, é uma posição de destaque que tem de ser valorizada. É a lei da adaptação, cara, sobrevivência dos mais aptos! Se o negócio aqui é assim, quem quer sobreviver tem que se adaptar. Ou tu pensa que aqui é a Suécia? Aqui é o Brasil, não se pode importar o que é de fora, a criatividade tem que ser nossa.


- Mas, se for assim, não vai ter mais nada dentro da lei.


- E aqui tem alguma coisa dentro da lei? A única coisa que tem dentro da lei aqui é pagar imposto e, assim mesmo, pra quem é otário. Não, não, tu tem que admirar a criatividade do povo brasileiro. E não é só a ceguinha, não, é tudo. Agora mesmo, me contaram um golpe novo que me deixou bestificado de admiração. É o golpe da loja, obra-prima.


- Roubo de loja, é isso? Qual é a novidade?


- Olha aí tua descrença. Não é qualquer roubo de loja. Quem me contou foi um amigo meu, que tem uma loja. É gênio mesmo, cara, tu tem de reconhecer. Escuta só. Entram duas mulheres na loja dele, produtos de beleza. Aí elas começam a circular entre as prateleiras e tal e coisa e uma delas de repente tira uma besteira de uma prateleira, acho que um batom de uns cinco reais, bota na bolsa e o segurança viu. Aí é que está a beleza do detalhe. O segurança viu o lance, mas não viu quando ela botou o batom de volta em outra prateleira, isso ele só sacou depois, quando o golpe já estava aplicado.


- Não entendi nada, não manjei qual foi o golpe.


- É o seguinte: na hora da saída dela, o segurança foi lá e falou no ba-tom. Ela abriu a bolsa, claro que não tinha batom nenhum e aí foi aquele auê. Constrangimento ilegal, dano moral, não sei o quê, um escândalo. E a amiga dela era advogada.


- E colou?


- Se colou? Claro que colou, ainda mais que ela era moreninha. Não era negra, era moreninha mas, hoje em dia, você sabe, ser negro depende da declaração da pessoa. Ela declarou que era negra e, além do constrangimento ilegal, a advogada tacou racismo nos cornos dele, crime inafiançável, não sei o quê, já pensou a situação do cara?


- Bem, ele deve ter pedido desculpas.


- Pediu, pediu. Em juízo. Morreu em doze mil reais, tu acredita? Doze mil! Agora, é ou não é uma coisa de gênio? Já pensou o catado que essas duas podem fazer numa manhã de trabalho? O povo brasileiro é o mais criativo do mundo, vamos reconhecer.


- É, mas criativo pra essas coisas. Tu acha que está certo?


- Claro que acho, não é esse o clima geral, não é assim que tudo funciona aqui? Nós somos é um povo maravilhoso, cada dia mais eu fico patriota, todo dia aprendo uma coisa. O rapaz do contrabando já chegou? Esse eu também gosto de ver.


- Qual, aquele que bota o mostruário em cima de celular que está em cima da mesa e, quando leva o mostruário, leva junto o celular? Mas ele não faz mais isso, já fez umas duas vezes e não cola mais.


- Pois é, deve ter inventado uma coisa nova, a criatividade é inesgotável. Mas desta vez eu não posso ficar para ver, tenho de voltar ao receio do lar, hoje vai gente almoçar lá em casa.


- O receio do lar? Você não quis dizer o recesso do lar?


- Não, receio mesmo. Pode ser que invadam a casa para assaltar, agora está na moda.


- É, tá certo, receio tá certo.


- Por enquanto, mas vai melhorar. Eles estão entrando num esquema empresarial, não vai ter nem mais essa de violência. Pode ficar com seu pessimismo, eu tenho crença no futuro do país. Quando eles lançarem ações na bolsa, eu vou investir. O Brasil vai para a frente, cara, o espetáculo do crescimento já começou, só quem não vê é quem tem os olhos tapados como você!


 


O Globo (Rio de Janeiro - RJ) em 11/04/2004

O Globo (Rio de Janeiro - RJ) em, 11/04/2004