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A criança e o poeta

 

Que o poeta e a criança costumam participar do mesmo plano de realidades, é coisa em que sempre acreditei. Uma certa pureza de percepção como que separa nacos do mundo para eliminá-los por dentro, o que dota a visão da criança e do poeta de uma nitidez que afasta das imagens qualquer traço desnecessário. Dir-se-ia acontecer, aí, um reducionismo na linha de Husserl, de reduzirmos o real a seus aspectos fundamentais e colocarmos entre parênteses tudo o que pode esperar. Essa identidade faz pensar também na tese da "poesia do instante" de Gaston Bachelard. O instante é a poesia. Acrescenta Bachelard: "Fora do instante , só existem a prosa e a canção." A sintaxe pode deter ou desviar as consequências do instante poético. É, assim, natural que o poeta e a criança intervenham na sintaxe e inventem uma linguagem.


O poeta por excelência do Brasil de hoje, Manuel de Barros, acaba de nos revelar a verdade e a força dessa união poeta-criança. Seu livro "Exercícios de ser criança" não só inventa uma linguagem como insinua significados novos nas palavras e nas imagens. Manuel de Barros ao mesmo tempo imobiliza e agita seus instantes, horizontalizados, destaca-os de outros contextos, levado, que é, pela sua necessidade de quebrar o falso movimento da duração. Vejam-se estas linhas do livro de agora:


"O menino que carregava água na peneira.

A menina disse que carregar água na peneira

Era o mesmo que roubar um vento

E sair correndo com ele para mostrar aos irmãos."


Na clareza das palavras, menino e poeta fazem peraltagens não só com o significados normais das coisas, mas também com o seu ritmo. A mãe diz ainda que levar água na peneira é o mesmo " que catar espinhos na água" e "criar peixes no bolso". Poeta e crianças estão juntos nessa declaração: com o tempo, os dois descobriram que "escrever seria o mesmo que carregar água na peneira". Mas a constatação ia além:


" No escrever o menino viu

que era capaz de ser

noviça, monge ou mendigo

ao mesmo tempo."


Em seu livro "L'intuitin de l"instant", faz Bachelard o elogio do presente, do tempo que está passando, insiste na "plenitude" e na "evidência positiva" do momento, acrescentando: "Moramos no presente com nossa personalidade completa. É somente aí, por ele e nele, que temos a sensação de existência. E há uma identidade absoluta entre o sentimento do presente e o sentimento da vida."


O que chamamos de "surrealismo", às vezes de "fantasia", nos sentidos extremos dessas palavras, não deixa de ser uma paixão pelo instante. Em toda a sua poesia, colocou-se Manoel de Barros da realidade com uma espécie de dúvida, de suspeitosa admiração, como quem dissesse a si mesmo que, além do que via, engenhado nas engrenagens do presente, havia todo um mundo de formas e de linhas, que precisam ser ditas, postas em palavras, no esforço de ajudar a visão das coisas e de inventar lugares e flores, bichos e gentes:


"No caminho, antes, a gente precisava

de atravessar um rio inventado.

Na travessai o carro afundou

E os bois morreram afogados.

Eu não morri porque o rio era inventado."


Faz Ezra Pound, em seu "Abc da literatura", o elogio da simplicidade na poesia trovadoresca do século XII de que os versos de Arnaut Daniel seriam o melhor exemplo. Diz Pound: " O século XII, ou mais exatamente o século cujo centro é de 1200, legou-nos duas dádivas perfeitas: a Igreja de San Zeno, em Verona, e as canzoni de Arnaut Daniel".


Nessas canções estavam um sentimento que, naturalmente, existia muito antes de Bachelard, talvez desde o instante em que o homem primitivo imitou, com a garganta, o ruído do mar ou do vento nas folhas. Também outro poeta da meama época de Arnaut, São Francisco de Assis (1182-1226), ligou seus cantos aos bichos da terra e da água às flores mínimas da paisagem, Em seu "Cântico das criaturas", dirige-se Francisco de Assis ao irmão Sol, à irmã Lua e às estrelas, ao irmão Vento, à irmã Água ("útil, e humilde, e precisa e casta"), ao irmão Fogo, à irmã e Mãe Terra. Na linha simplicidade, normal nos poetas do tempo de Dante, Arnaut Daniel podia dizer:


" Eu sui Arnaut qui plor e vou cantan"

(Eu sou Arnaut que chora e vai cantando)


Manoel de Barros insuflou, na poesia brasileira, esse tom de essencialidade que eleva a poesia feita na língua de um país e para a gente que mora nessa língua. Nela pode ele escrever:


" O menino aprendeu a usar as palavras.

Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.

E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro

Botando ponto no final da frase."


"Exercícios de ser criança" é um lançamento da editora Salamandra. Participaram da bela feitura gráfica do livro inúmeras reproduções de bordados de Antonia Zulma Diniz, Ângela, Marilu, Martha e Sávia Dumont, sobre desenhos de Demóstenes. Projeto gráfico de Cláudia Lopes Mendes e Demóstenes, coordenação editorial de Pascoal Soto e fotografias de Rui Faquini.




Tribuna da Imprensa - Rio de Janeiro - RJ, 19/04/00