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Conhece-te a ti mesmo

 

Há frases que percorrem o mundo revestidas de autoridade. Basta pronunciá-las para que todos se deixem convencer de seus acertos. Consagradas pelos séculos, elas fazem parte daquele repertório cultural de procedência nobre, citado com freqüência, e que ninguém ousa contestar. São sentenças que, por seu caráter imutável, reforçam equívocos históricos, preconceitos e crenças conservadoras.


A frase ''conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses'', por exemplo, bem que se ajusta a esta categoria. Inscrita à entrada do santuário de Delfos, na Grécia antiga, e difundida por Sócrates, circula até hoje pelo Ocidente.


Em torno dela, teceram-se tantas interpretações que se tornou impossível rastrear seus efeitos na vida do cidadão comum. Como conseqüência, alguns de seus fundamentos, transpostos para a modernidade, desembocaram nestes cursos de autoconhecimento e avizinharam-se de certos postulados inerentes à psicanálise.


A sentença convence-nos de que o homem tem condições de visitar o templo da alma, de percorrer suas salas como se estivesse em um museu, assim podendo, no final desta inspeção, decifrar os próprios mistérios, o tumulto das suas emoções e os sentimentos que leva encarcerados no peito. Balbuciar as muitas línguas que cada qual fala no interior do seu coração. Enumerar os diversos seres que o habitam. Mencionar as maravilhas e os assombros que perturbam a imaginação humana. Esclarecer de qual combustão a paixão é feita, para que a vista lhe escureça de repente e as palavras tenham febre.


A frase sugere ainda que os deuses, astutos por excelência, admitem a malícia do homem, num recurso que, desde sempre a serviço de sua humanidade, ajuda-o a esquivar-se dos desastres, a fiscalizar a besta que dorme e desperta com ele.


Saídas da boca dos oráculos, as palavras ''conhece-te a ti mesmo'' esquecem, contudo, de equacionar o tempo que o homem necessita para expurgar seus demônios interiores. Não mencionam que lhe seja um dia possível vislumbrar, em um simples átimo, a existência de um muro moral que o isole dos perigos do mundo. Uma murada que o abrigue das intempéries engendradas pelo seu instinto predatório.


É uma frase que, ao semear em torno a esperança e a discórdia ao mesmo tempo, cutuca o homem com a vara da vaidade. Insinua-lhe a condição de deus - um deus a mais entre os homens - caso retire os véus da alma e assuma, a que preço seja, os próprios atos.


Uma frase, sim, que o insta a encetar uma viagem acidentada, pelos escaninhos das suas tripas e da sua alma, e da qual em nenhuma hipótese sairá incólume. Um percurso em que, ao experimentar a dor de privar com o fardo de sua sofrida condição, o homem resigna-se em ser, afinal, um mero caçador de sonhos. Uma esquálida sombra que perambula pelo deserto, impossibilitada de prever a rota de sua seta voraz e misteriosa.


E não será este enigma, expressão suprema do seu humanismo, a garantia do seu caos e da sua liberdade?


 


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 15/2/2006