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A condição humana

 

Estudar um livro ou qualquer manifestação literária exclusivamente do ponto de vista estético ou político do momento foi a constante de uma corrente da crítica literária que se avolumou a partir do século XIX. Na linha dessa posição, muita gente se enganou - como se engana ainda hoje - pensando que a vanguarda está aqui quando está lá, lá quando aqui.


As principais conquistas dos movimentos literários daquele tempo - o Romantismo, o Realismo, o Naturalismo, o Simbolismo - foram no sentido de sacudir os aparentemente inamovíveis alicerces das classificações estabelecidas que as letras setecentistas pareciam sugerir. Como tudo mudava de lugar, o analista era levado a se concentrar em detalhes como a sintaxe, a morfologia, os recursos meramente técnicos surgidos com as modificações de fundo, como se tudo estivesse ali. E tinha, por exemplo, de deixar que um poeta como Baudelaire passasse despercebido.


É que os analistas normais não costumam considerar a obra de arte no seu todo, na sua existencialidade completa, no seu "estar-aí" que tudo engloba. Estando a crítica brasileira normalmente atada a análises mais ou menos hábeis, dificilmente dará atenção a uma escritora da força e da importância de Wanda Fabian.


Desde que, nos anos 60, o Prêmio Nacional Walmap chamou a atenção para o seu nome, vem ela publicando romance atrás de romance, peça de teatro atrás de peça de teatro - algumas encenadas - sem obter a atenção maior dos chamados meios de comunicação. Só nos últimos três anos, teve Wanda Fabian publicados cinco romances: "Olho de lince" (uma estranha narrativa policial), "As mil e uma grades", "Melhor do que o Éden" (de ação passada em Copacabana), "Conte-me o teu segredo" e agora, nas últimas semanas do ano que se foi, "Tabu".


De que maneira usa Wanda Fabian os instrumentos da narrativa? Que meio social, que mundo, aparecem nos seus movimentados enredos, servidos de uma técnica primorosa de diálogos? O que ela nos mostra e retrata é a classe-média toda inteira, pegando-a em suas três faces: a classe-média alta, a classe-média média e a classe-média baixa.


Seus personagens são pessoas reais que passam pelas mais diferentes circunstâncias de uma vida coletiva. Sua gente está sempre cercada e presa dos que se lhe opõems ou a apóiam. Os personagens brigam, amam, discutem, xingam, numa busca seja do que for, mas na realidade numa busca de si mesmos.


A estética do classissismo dividia os assuntos e as maneiras de serem eles tratados, em três classes vezes três: havia o grandioso, o clássico e o sublime; depois, o médio, o agradável e o inofensivo; enfim, o ridículo, o baixo e o grotesco. Os últimos dois séculos sacudiram essa hierarquia e tornaram possível uma largueza de que principalmente se valeu o romance para romper certos limites e se transformar no gênero de maior atração para leitores de todas as idades.


Os personagens de Wanda Fabian soltam-se em seus livros - e isto é visível em "Tabu", o mais recente deles - com uma liberdade total de ação e de palavras, no que se poderia chamar de minúcia descritiva, como se a romancista assumisse o papel de uma intérprete da condição humana.


Possui também ela um estilo forte, capaz de levar avante o que há de totalmente inesperado numa situação dada. O começo de "Tabu", por exemplo, é o de uma comunicação por celular informando que "Luiz Carlos suicidou-se com um tiro na boca", recado que dá a idéia de como será o romance porque o personagem que recebe a chamada exclama: "Luiz quem? Ah, o Luluca."


Wanda Fabian junta os habitantes de suas histórias num ritmo narrativo que não se detém, pega um incidente e segue fielmente com ele para pegar o leitor pela força de sua insistência em mostrar que a gente de seus romances não difere muito da que existe no mundo real.


Menos primitiva do que a poesia, a arte do romance mantém-se mais perto do homem que vive acontecimentos e que, em geral, não consegue ter o vislumbre da iluminação poética e só conhece a vida sob a forma do desenvolvimento, do tempo que passa, da corrente de fatos, de incidentes que, como a água que escorre, seguem uma estranha, e às vezes desconhecida, lei de gravidade moral.


A obra literária de Wanda Fabian prende-se tanto à concepção como ao seu estilo de manejo. Seu "Tabu" tem um padrão, um desenho geral, uma diretriz, que conduzem a narrativa num estilo vivo e ao mesmo tempo caudaloso, num clima que, pela sua mesma vivacidade, faz lembrar a cadência dos antigos narradores, dos contadores de história que uniam a imaginação desabrida a uma sabedoria no uso das palavras. E seu assunto é, repito, a própria condição humana.


O tipo do romance (ou da poesia, da peça, do conto) pouco deve interessar ao analista a não ser para a identificação de uma largueza da adaptação do homem ao próprio destino. Há o romance violento, o que sai dizendo coisas, afirmando, gritando - e o que sugere, põe um gosto de música de câmara nas palavras e, ao mesmo tempo, registra a violência e a incompreensão do dia-a-dia.


Este segundo plano é o de Wanda Fabian. Daí sua ironia, às vezes dotada de veemência, num tom de quem não precisa desculpar seus personagens pelo que são. Na sua dura caminhada de escritora de romance, apresenta Wanda Fabian uma visão de como somos, de como agimos, nos momentos de crise e de amor ou ódio.


"Tabu" é uma edição da Editora Novo Milênio. Produção gráfica de Walter Duarte. Editoração eletrônica de Ito Oliveira Lopes e Wellington Lopes, ilustração de capa de Lígia Vieira de Castro, digitação de Gisley Guimarães, Revisão de Gislene Guimarães.


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 25/01/2005

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro), 25/01/2005