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A ciência do falso testemunho

 

A história da ciência nem sempre é feita de episódios edificantes. Fraudes e falsificações aparecem com alguma freqüência, e o caso do cientista sul-coreano Hwang Woo-suk, que "fabricou" pelo menos parte de suas pesquisas sobre células-tronco, está longe de ser único. O médico alemão Phillippus Theophrastus Bombastus von Hohenheim, conhecido como Paracelso (1493-1541), revolucionou a medicina em seu tempo, mas também se dizia capaz de fabricar um ser humano em miniatura, um homúnculo, a partir de esperma.


Suspeitas sobre Pasteur


O austríaco Franz Anton Mesmer (1734-1815) desenvolveu a teoria do magnetismo animal, usando imãs e depois as mãos para "magnetizar" suas pacientes. Nem mesmo Louis Pasteur, o fundador da moderna microbiologia, escapou de suspeitas. Antes de imunizar o jovem Joseph Meister contra a raiva, uma caso que o tornou famoso, Pasteur tinha, segundo o biógrafo Gerald Geison, usado a vacina em duas outras pessoas, um homem chamado Girard, que provavelmente não tinha raiva (e que portanto saiu bem do episódio) e uma menina, Julie-Antoinette Poughon, que morreu e sobre a qual Pasteur silenciou.


Já no começo do século 20 ocorreu um episódio até hoje citado, quando um agricultor encontrou, perto da aldeia inglesa de Piltdown, um fragmento de crânio. O arqueólogo amador Charles Dawson prosseguiu a busca e encontrou, em 1912, uma mandíbula. Com isto surgia o Homem de Piltdown, ou "Eoanthropus dawsoni" ("o homem da aurora de Dawson"), o que tornava a Inglaterra um berço da evolução humana.


Mas em 1953 o dr. Kenneth Oakley mostrou que o crânio era de um homem morto há não muito tempo e que a mandíbula era de um orangotango. Tanto os ossos como os dentes tinham sido "maquiados" para parecerem antigos. A história resultou em grande embaraço para a comunidade científica britânica, e a pergunta surgiu: quem teria fabricado a fraude? Até sir Arthur Conan Doyle, médico e criador de Sherlock Holmes, foi acusado: ele morava não longe de Piltdown.


Mas o melhor candidato para autoria do "crime" continua sendo o próprio Charles Dawson, que nunca esclareceu como tinha achado os supostos restos arqueológicos.


Em 1974, William T. Summerlin, chefe da seção de imunologia de transplantes do famoso Instituto Sloan-Kettering, anunciou que podia transplantar em animais córneas, glândulas e pele, inclusive de espécies diferentes. E mostrava como prova um rato branco no qual um fragmento da pele preta de outro rato tinha sido enxertada. Mas era uma fraude: usando uma caneta hidrográfica, Summerlin simplesmente pintara de preto aquela parte.


Fusão fria


Mais ou menos na mesma época ocorreu o caso do psicólogo Cyril Burt, que fizera uma brilhante carreira acadêmica na Inglaterra, tendo sido um dos pioneiros no uso dos testes psicológicos. Publicou numerosos artigos sobre o tema e finalmente empreendeu um estudo sobre a genética do comportamento. Trabalhando com gêmeos, pesquisou a hereditariedade da inteligência, medida por testes de QI.


Quando esses trabalhos foram reexaminados, constatou-se que os dados eram fraudulentos; dois de seus supostos colaboradores teriam sido inventados pelo próprio Burt. É preciso dizer que Burt teve seus defensores, mas, de qualquer modo, sua reputação ficou seriamente abalada.

Na área da física podemos mencionar a teoria da "fusão fria" ("cold fusion", 1989), que, segundo os pesquisadores Stanley Pons e Martin Fleischmann, seria uma fonte ilimitada de energia. Mas era fria mesmo: outros cientistas não conseguiram reproduzir o trabalho.


Finalmente tivemos, há dez anos, o caso de Alan Sokal. Professor de Física na Universidade de Nova York, Sokal publicou na revista "Social Text" um artigo intitulado "Transgredindo as Fronteiras: Para uma Hermenêutica Transformadora da Gravidade Quântica".


Sal na ferida


Tratava-se de uma gozação destinada a mostrar como é possível, por meio de uma linguagem complicada, enganar até mesmo uma revista de prestígio (não é preciso dizer que os editores não gostaram nem um pouco da história). Jogando sal na ferida, ele denunciou o "declínio dos padrões de rigor científico na área acadêmica de humanidades".


Richard Lewontin, biólogo evolucionista e ensaísta conhecido, vai mais além e pergunta: "Por que deveríamos confiar nos cientistas, que, afinal têm suas próprias agendas políticas e econômicas?". É uma perigosa generalização, mas os interesses, a busca de prestígio, a luta por cargos realmente podem exercer um efeito pernicioso sobre a conduta das pessoas.


David Goodstein, da Universidade da Califórnia, aponta dois outros fatores na gênese da fraude científica: a pressão da carreira e o tipo de pesquisa: aquelas cujos resultados não poderiam ser facilmente reproduzidas se constituem em "tentação" maior. Aliás, um estudo da socióloga Pat Woolf, com 26 casos de fraude entre 1980 e 1986, mostrou que a maioria (21 estudos) era da área biomédica, onde a incerteza quase sempre existe. Mas, ao fim e ao cabo, trata-se de uma questão de ética. E deve ser abordada já na universidade: em matéria de fraude na ciência, é melhor prevenir do que remediar.


 


Folha de São Paulo (São Paulo) 15/1/2006