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A certeza e a derrota

 

Este romance, "O evangelho da incerteza", de Wanda Fabian, obteve prêmio especial no Grande Concurso Walmap realizado no final dos anos 60 do século passado. Sabia-se naquele tempo, mas sabe-se mais hoje, que se tratava de uma obra-prima da ficção brasileira. Sua nova edição, que sai agora, vinha há muito sendo esperada pelos que acompanharam os lançamentos do Walmap.


Na concepção, nos detalhes, na criação dos personagens, em tudo se revela a força, a variedade e a riqueza de percepções de Wanda Fabian, que levanta seu universo para - dentro dele e por ele cercado - lutar pela sua liberdade inteira de ser. Assim age Redenção, a personagem conhecida como Denção, que, situada no âmago da fabulação em que a autora a encerra, ergue sua revolta, prepara sua luta e diz "não".


E ela o diz de modo apaixonado, porque a paixão é a base de seu comportamento. A linguagem da romancista Wanda Fabian é clara, direta, nítida, às vezes rápida. A clareza e a direiteza de sua narração estão ligadas a uma técnica pessoal de criar gentes, de as inserir em conflitos e de, apaixonadamente, brigar por uma liberdade total de pensamento, tanto da autora como de seus personagens. De seus personagens, aceita-se que o jogador inveterado e a beata impérvia a qualquer argumento formem um casal perfeito para perturbar uma família.


Aceita-se também que a paixão não tenha limites. Pode ir até o fim da paisagem. Ou além, e nem sempre aceita desculpas do outro lado. Apaixonada pela posição que ocupa, a romancista Wanda Fabian dá, com isto, mais realidade a um mundo que busca a liberdade e não pode perder tempo com uma possível contenção na sua luta.


No meio de muita contenção mal arranjada, que romances mais recentes em todo o mundo vinham apresentando como ideal, a raiva solta e livre de "O evangelho da incerteza" reafirma o valor da literatura que não tem medo algum de revelar sentimentos e de descrever minuciosamente situações, aqueles e estas nem sempre inteiramente de acordo com os códigos em voga num certo momento.


No caso de Wanda Fabian, existe uma identidade entre a autora e o escrito. Ela e seus personagens querem atingir e decifrar alguns mistérios do ser. Para isto, procura Wanda Fabian fixar momento de consciência. Daí, sua identidade com o que escreve. Ao inventar um universo em que circulam vários personagens, é preciso que a invenção alcance um nível de verdade, e não só isto, pois também há que melhorar esse universo, torna-lo mais realizado e menos subordinado a incertezas.


Aquilo que E. M. Forster colocava como base constitutiva do romance, e a que poderíamos dar o nome de "padrão sinfônico", existe no "O evangelho da incerteza". Trata-se de um espírito geral de determinado romance em que a linguagem do romancista se distingue da linguagem dos personagens, cada um falando e pensando à sua maneira.


O estilo de Wanda Fabian dispõe de uma excelência literária que insufla uma vigorosa solidez tanto nos seus personagens como nos seus ambientes. E esses personagens e ambientes - e são muitos - têm a servi-los uma clareza vocabular absolutamente serena, apesar do impulso quase selvagem que emana do livro.


A ficção brasileira deste ainda começo do século XXI apresenta, na obra de Wanda Fabian, uma abertura através da qual iremos conhecer uma série de aspectos importantes na vida do País. Há um novo tipo de presença feminina entre nós, que aparece em seus livros de maneira evidente.


Há, principalmente, em sua obra, um "não" geral, um "não" gigantesco, um "não" a tudo o que escraviza e prende, um "não" a tudo o que perturbe a alegria de viver, um "não" a tudo o que possa impedir o desejável entendimento nas relações entre mulher e homem, base da sociedade que, há milhares de anos, estamos tentando organizar o mais harmoniosamente possível.


Um livro como "O evangelho da incerteza", lançamento da autora em sua terceira edição, na sua excelente feitura literária, mostra como está nas últimas palavras de seu universo reinventado, que, apesar das incertezas, evangélicas ou não, o amor é a única certeza absoluta.


Tribuna da Imprensa (RJ) 5/6/2007