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Caminhos da insubmissão

 

Dentre os livros de Henry Miller, um há que pode ser considerado um "Evangelho da Insubmissão". É o volume chamado "Tempo dos assassinos". Nele, ao estudar Rimbaud, o que Miller faz é um levantamento completo dos insubmissos dos últimos dois séculos. De Shelley, Blake, Stendhal e Hegel até Baudelaire, Poe, Conrad, Claudel, Dostoevski, entre outros, mas o insubmisso mais desabrido é Rimbaud.


Biografia? Exatamente não. Ensaio? Até certo ponto. Na realidade, é uma exaltação aos que tenham ido além das amarras do preconceito e da indiferença. Para Miller, só os insubmissos romperão a cadeia de cerceamentos que impedem o homem de ver a realidade e, vendo-a, avançar alguns passos no domínio de si mesmo. Os mais variados aspectos da vida e da obra de Rimbaud aparecem nas análises de Henry Miller.


Fala de seu profundo sentimento de solidão desde jovem na França até Harar, a cidade africana em que Rimbaud resolveu morar, analisa seu nojo da poesia depois de haver, desde muito jovem, escrito dos mais espantosamente explosivos versos da língua francesa, em seguida aos quais abdicou da poesia para se isolar de sua gente, de sua terra, de seu idioma.


Traça Miller também um paralelo entre Van Gogh e Rimbaud, o primeiro nascido um ano mais cedo e mortos quase na mesma idade, 37 anos, em 1891. Nesse mesmo 91, outro insubmisso, Nietszche, ficaria louco de repente numa rua de Turim. Longe de versos e de livros, de escritores e de qualquer pessoa de sua família, Rimbaud se dedica a conseguir armas para o rei Menelik, da Abissínia. Os poemas haviam ficado para trás, a vida normal de um francês que freqüentava meios em que se discutia literatura desaparecera, mas o que escrevera não foi destruído e marcaria para sempre os que o entendessem.


Em página de seu livro, faz Henry Miller a seguinte declaração: "Por que, pergunto-me eu, adoro Rimbaud acima de todos os demais escritores? Não sou entusiasta da adolescência, nem pretendo que ele seja tão grande escritor quanto outros que poderei citar. Mas existe nele algo que comove mais do que a obra de qualquer outro homem. E eu chego a ele através da névoa de um idioma que nunca dominei.


De fato, não foi senão quando cometi a tolice de querer traduzi-lo que comecei a avaliar devidamente a força e a beleza de suas expressões. Em Rimbaud, eu me vejo comum num espelho. Nada que ele diz me é estranho, por mais selvagem, absurdo ou difícil de entender. Para compreender é preciso entregar-se, e eu me lembro claramente de me haver entregue no primeiro dia em que olhei para sua obra."


Tendo escrito seu último poema aos 18 anos, Rimbaud a partir de então viajou pelo mundo, percorreu grande parte da Europa, de vez em quando era preso e expulso para o país mais próximo, onde também não o queriam, na Abissínia o excesso de cavalgar o levava para a cama, em toda parte percebe que o tempo em que está vivendo é "O tempo dos assassinos".


Diz Henry Miller que os poetas costumam estar com suas vidas ameaçadas. Afinal, o tempo é de assassinos não apenas em lugares determinados onde haja guerras e revoluções, mas em toda a parte, em Nova York, Paris, Londres, no Rio de Janeiro e em qualquer outra cidade brasileira. Quando Kenneth Rexroth soube da morte prematura do poeta Dylan Thomas, rabiscou um necrológico para a imprensa, subordinado ao título "Thou shalt not kill", "Não matarás".


Como Dylan Thomas morrera na realidade de tanto beber, para Kenneth a sociedade o matara como já matara outros, inclusive Rimbaud, cujo último poema, "Temporada no Inferno", descreve o mesmo e faz sua "Última vontade e testamento". Nunca mais escreverá um verso. Henry Miller comenta: "Já se foi a sua juventude, e com ela toda a juventude do mundo.


Seu país jaz prostrado e derrotado depois da guerra prussiana; a mãe quer apenas se livrar dele, criatura impossível que ele é. Ela já conheceu fome, miséria, humilhação, rejeição; esteve na prisão, assistiu à Comuna sangrenta, talvez tenha até participado dela, experimentou vício e degradação, perdeu o seu primeiro amor, rompeu com os companheiros de arte, inspecionou todo o campo da arte e achou-o vazio e agora está para entregar tudo ao diabo, incluindo ele mesmo."


A definição de Paul Claudel para Rimbaud ("Um místico em estado selvagem") tornou-se comum quando se fala do poeta. O próprio Rimbaud sabia-se vidente, no sentido religioso da palavra. A tese de que toda a poesia, mesmo quando não pareça, é confessional, tem Baudelaire e Rimbaud como nomes que em primeiro lugar são lembrados no assunto, acrescentando-se a eles dois escritores que começavam, na mesma época, a chamar a atenção dos meios literários da França: Gérard de Nerval e Lautréamont.


Terminando seu estudo da poesia de Rimbaud e um grande número de poetas e prosadores do século XIX, Henry Miller enumera os nomes (diz: "Que século de nomes!) que avaliavam as crises, os colapsos, as alucinações e visões que abalavam as raízes da política, da moral, da economia e do viver a vida normal.


Termina com estas palavras: "Chegamos ao fundo? Ainda não. A crise moral do século XIX apenas cedeu lugar à bancarrota espiritual do século XX. É "o tempo dos assassinos", e não há possibilidade de engano. A Política tornou-se negócio de bandidos. Os povos estão marchando com os olhos no céu, mas não cantam hosanas; os que estão embaixo marcham para a fila do pão.


"Tempo dos assassinos" foi traduzido por Jorge Cardoso Ayres e publicado pelo editor Hermenegildo de Sá Cavalcante. Capa de Luiza Campelo.




Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 05/07/2005

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro), 05/07/2005