É como se os fantasmas de Federico Fellini, Marcello Mastroianni e Anita Ekberg tivessem sido despejados de seu habitat —Fellini, o cineasta, com suas câmeras; Marcello, o jornalista, com seu caderninho de telefones das maiores mulheres da Europa; e Anita, a deusa descalça, de preto longo e busto continental. O cenário é o Café de Paris, em Roma, território de "A Doce Vida", o filme com que Fellini parou o mundo em 1960 —o Vaticano tentou proibi-lo, os liberais o defenderam, e todo mundo quis vê-lo para conferir. Mas há muito não há mais a doce vida. Não aquela que Fellini mostrou.
O Café de Paris, ao lado da embaixada americana e em frente ao Hotel Excelsior, na Via Veneto, está fechado há anos. Mas seu cadáver nunca foi sepultado. A fachada ainda conserva o logotipo original e quem espiar pela grade de ferro lavrado verá o hall de entrada e parte do bar. Pensará ouvir a música de Nino Rota feita para o filme e ver relances de Anouk Aimée, Magali Noël e Nadia Gray, as outras grandes mulheres em cena, com seus ombros nus e narizes petulantes. Tudo miragem, claro.
É intrigante como um endereço com essa história fique tão abandonado —no Brasil, já teria se tornado um supermercado ou igreja evangélica. Talvez os que pudessem explorá-lo vejam nele uma caveira de burro, um ponto que não dá sorte. Ou um lugar condenado por tudo o que seus frequentadores supostamente aprontaram em 1001 noites dos anos 1950 —um turbilhão de conquistas, champanhe, cocaína, talvez até conspirações mafiosas.
Na verdade, nem a mítica Via Veneto existe mais. Seus últimos redutos boêmios, mesmo os com mesas na calçada, fecham cedo. À meia-noite, a rua está vazia. O Café de Paris é só um dos caixões ao relento.
E se nada ali jamais tiver existido? A Via Veneto de "A Doce Vida", por mais realista, era um cenário de estúdio, construída em Cinecittá. Talvez tudo o que se pensava ter acontecido nela fosse uma ilusão coletiva, induzida por Fellini para que, um dia, ele fizesse dela um filme.