Já escrevi duas vezes aqui a respeito de como acho que está em andamento um golpe a ser dado pela situação, mais especificamente através do uso do apetite imoderado do presidente da República pelos gozos do poder. Para ele, não há diferença entre parlamentarismo, presidencialismo, socialismo, comunismo, fascismo, democracia, caudilhismo, peronismo, fujimorismo, esquerda, direita, nada disso. Não me refiro à sua dele ignorância teórica, pois que esta é tão vasta que ele jamais lhe vislumbrará os limites e corresponde ao porte de sua esperteza, ausência de escrúpulos (praticante de Realpolitik, dirá um dos membros do seu serralho moral), sinceridade duvidosa e apetite por tudo a que tiver direito, inclusive ao que não tem direito ainda, mas certamente quererá, se lhe for oferecido. E, claro, se chamado a dar uma definição dessas palavras aí em cima, seguramente encontrará dificuldades, até porque é assunto que nunca lhe interessou muito, a não ser numa necessidade prática aqui e ali. Não lhe interessam rótulos e ideologias. Interessa o poder.
Isso aí é, admitidamente, uma impressão pessoal, embora eu acredite que, em termos gerais, muita gente concorda com ela. Observem que não estou caluniando o presidente da República. Não disse nunca que o golpe é planejado por ele, até porque ele não precisa fazer nada, vai tudo correr no automático. Estamos presenciando a disseminação do que poderíamos chamar "golpe legal", ou seja, realizado através de mecanismos perfeitamente legitimados pela ordem jurídica, alguns agora cada vez mais enobrecidos, como o plebiscito, como se estivéssemos de volta aos bons e velhos tempos em que ainda se praticava a chamada democracia direta. Eu disse que o golpe vai se dar através do presidente, até porque não há outros nomes, nem há mais petismo, nem praticamente "ismo" nenhum de alguma relevância eleitoral, a não ser o lulismo. Ele topa o que vier e sua pergunta-chave será se, em qualquer novo esquema, ele continuará a exercer a função principal, ou seja, se vai continuar no poder. Se responderem que sim, ele veste a camisa na hora.
Desisti, pelo menos momentaneamente, de ficar brincando de analista político profissional, procurando ler os especialistas, telefonando a amigos e fuçando blogs, para ficar "por dentro da situação". Não é preciso nada disso. Aqui mesmo de minha toca, de onde saio cada vez menos e não sinto falta, já acertei uma porção de palpites, desde bem antes da CPMF, cujo P vi logo que era de "permanente", nunca caí nessa. E creio que muitos de vocês já minhocaram o suficiente para compreender que grande parte do que negam é verdade e que esse pessoal que ora atufa a máquina pública e as estatais não vai querer largar o osso. A vida pública é quase sempre descrita como um grande sacrifício, mas devemos ser o povo com mais vocações de mártires no mundo, porque ninguém quer deixar de se sacrificar.
Paranóia ou não, delírio ou não, está na cara que o presidente quer o terceiro mandato. Ele diz que não, mas de vez em quando um indício escorrega, todo mundo já pegou um. Para quem passou um tempinho fora como eu - basta um tempinho -, a visão fica mais nítida. Desde que cheguei que só batem em meus ouvidos e meus olhos de leitor de jornais notícias e comentários sobre o terceiro mandato. Sublinhe-se ainda a inflamada defesa que o presidente fez de Chávez, que preside um país a seu ver democrata, apesar de um Congresso submisso, um Judiciário entupido de amigos e correligionários e dinheiro para vastos "programas sociais". Além disso, ele não gosta de Bush e é amigo de Fidel Castro, o que para diversos o torna um homem de esquerda, quando de esquerda ele só tem mesmo um braço e uma perna.
Ninguém enxerga a volta, sem muita renovação, do caudilhismo que parecia tanto ser coisa do passado. Ninguém vê nada de fascistóide no que se anda fazendo. Ninguém lembra o não ainda defunto peronismo. Ninguém lembra o que Fujimori andou fazendo no Peru. E, principalmente, ninguém parece se preocupar com o presidente achando a Venezuela uma democracia (aqui não é, quanto mais lá), até porque legitimada por eleições e plebiscitos. Não vou repetir a besteira que ainda muito se reitera, segundo a qual o povo não sabe votar. O povo sabe votar muito bem, para as circunstâncias, e vota no que o beneficia diretamente. No caso do Brasil, os eleitores cativos do Bolsa Família vão votar certo, ou seja, em Lula, criador e mantenedor do programa. Eles iam votar em quem? Não fazem idéia dos graves problemas que o programa vai gerar, nem de onde o dinheiro está saindo, nem lhes interessa que os políticos roubem - pois sempre tiveram essa fama e nunca deram nada.
A solução, porém, tem pouco de democrata. Votação maciça também levou os nazistas ao poder, assim como, na antiga Tchecoslováquia, o comunismo se instalou pela sabedoria popular, via eleitoral. O voto é sem dúvida soberano, para nós a única via legítima para a escolha dos governantes. Mas os votos decisivos, em nosso caso, são praticamente comprados de uma minoria apática, desiludida e até desesperada, o que não configura bem uma democracia. A maioria não tem o direito de cercear os direitos das minorias de qualquer tipo, e essa maioria está se lixando para irrelevâncias como liberdade de imprensa ou expressão, que nunca lhe serviram de nada, tudo coisa de barão.
Mas agora chegamos ao ponto a que chegamos. Já descrevi as manobras, todas perfeitamente legais, como na Venezuela, que podem ser facilmente tomadas, notadamente com políticos corruptos, inexpressivos e sem amor à causa pública, para o terceiro mandato. Ainda há uns probleminhas a resolver e, afinal, o esquema talvez não dê certo, mas está tudo sendo costuradinho, podem ter certeza. E a Zelite continuará tranqüila, pois quem paga nunca é ela.
O Estado de S. Paulo (SP) 25/11/2007