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Ao apagar das luzes

 

Por vício, defeito de formação, incompetência ou o que lá quiserem, tenho o hábito de começar o que escrevo pelo título. Sei de gente que também faz isso, mas estou seguro de que é minoria. Creio que o mais sensato é ter no máximo um título provisório, escrever e depois buscar o título definitivo. Mas sempre comecei pelo título e só sei trabalhar assim. E, ao ler esse que está aí em cima, vi que não é dos mais felizes, devia mudá-lo. Não mudo - desta vez a razão é incompetência mesmo - porque não sei. Contudo esteja o paciente leitor à vontade, não há de ser tarefa muito difícil. Minha aprovação não é necessária, vá em frente numa boa.


O título é ruim, em primeiro lugar, porque dá a impressão de que ainda vou ficar tratando de águas que não mais movem moinhos. Pelo menos um ou dois de vocês, pegado neste domingo sem ter o que fazer e levado pelas circunstâncias a, na falta de opção, ler esta coluna, deve estar sentindo o justificável receio de se bater com uma tagarelice qualquer sobre o que aconteceu no ano passado. Apresso-me a deletar a preocupação, não só porque sempre tive horror a retrospectivas mas também porque não me lembro de nada, a não ser de promessas. Como quem fez as promessas parece tê-las esquecido, ficam elas por elas. Não vou fazer exame nenhum do ano já finado.


Em segundo lugar, é ruim o título (olhem aí um quiasmozinho, dos que eu disse na semana passada que oferecia aos paladares estilísticos nostálgicos, recordar é viver) porque pode sugerir que, tendo faltado luz no primeiro dia do ano, eu quero curtir outra vez com a cara do governo. Decididamente não quero curtir com a cara do governo, até porque fica difícil distinguir bem qual é a cara dele, muito menos no começo do ano. Em relação a começos de ano, age-se como em relação aos defuntos. Por costume, não se fala mal do pranteado, assim como, para não soar catartídeo (urubu é um catartídeo; empreguei a palavra porque hoje estou caprichando em meus deveres filológico-literários e não só nunca mais contribuí para a forma física dos leitores, obrigando-os a levantar um dicionário no domingo, como nunca mais ninguém escreveu para o jornal, pelo menos que eu saiba, pedindo para me dispensarem pelo uso descomedido de palavras incomuns), não se fala mal do ano iniciante.


Pois é, eu ia escrever “ao acender das luzes”, para referir-me, metafori-camente, como está na moda, ao principiar do novo ano, o realentar-se de esperanças, o alcançar do horizonte róseo que nos pintam, o singrar no mar de almirante que nos aguarda e, melhor ainda, o voar de avião novo no céu de brigadeiro que o sol da Pátria alumia. Mas houve um apagão logo nesse primeiro dia. Claro, fora enfaticamente anunciado antes que não existia nenhum risco de apagão nos próximos tempos. E, logo em seguida, atribuiu-se o ocorrido a uma extraordinária conjunção de fatores, equivalente quiçá a tirar-se a megassena sozinho, fazendo a aposta mínima. Emboramente, como se diz na minha terra, uma voz ou outra, aqui e ali, tenha dito que, pode, sim, haver mais apagões, vamos fingir que não tomamos conhecimento, não vai ter mais apagão nenhum, foi uma infelicidade momentânea. De qualquer forma, escrever “Ao acender das luzes” para augurar bons fados a um ano novo que começou com um apagão podia parecer gozação e não era este meu fito.


Não, não, nada disso. Mas, da mesma forma que pelo menos alguns de vocês - espero eu, para não me sentir o único burro da nação -, não venho entendendo bem por que temos tantas razões de comemorar e esperar tudo de bom no futuro próximo. Continuo sem ver projetos ou programas, a não ser uns retalhos aqui e acolá. Continuo abordado na rua por gente que quer que eu escreva ainda mais sobre a violência urbana, a corrupção, o tráfico e mais tudo aquilo de que às vezes, principalmente se o tempo hoje faz a comparativamente rara misericórdia de nos mandar um dia ensolarado, a gente quer esquecer. Mas estou disposto a entrar na do otimismo, pois, como quase todos nós, sou dessas mulheres que só dizem sim e por uma coisa à toa, uma MP boa, um discurso, uma mentirinha, suporto qualquer ultraje e acredito em tudo.


O fato é que, assim ou assado, estamos progredindo e não precisou que o ano andasse muito para que isso ficasse demonstrado. Claro, quem pensa que, no famoso Primeiro Mundo, não há senão felicidade é um bobalhão, que não conhece a vida. O Primeiro Mundo não é só o Disney World, mas tem problemas também. E, se queremos chegar lá, como sempre estamos para chegar segunda-feira próxima, temos que pegar o que de ruim vem junto com o bom. Bem verdade que haverá os rabugentos que resmungarão que só tem pintado o ruim, esquecendo os celulares, o Halloween e os tênis fantásticos que qualquer um pode roubar com a maior facilidade.


Vem pintando muita coisa boa e, nas horas de dificuldade, como a re-cente calamidade em Criciúma, temos que, enquanto mostramos solidariedade efetiva, procurar o lado bom. No Brasil sempre apareceram redemoinhos, na maior parte minúsculos, folhas secas rodopiando em nuvens de poeira, ocasiões em que uma boa peneira de cruzeta, como ensinava Monteiro Lobato, pegava um saci-pererê. Agora os redemoinhos aumentaram e estamos rece-bendo um upgrade, chato temporariamente para os catarinenses, mas um passo importante em direção ao Primeiro Mundo: não são mais redemoinhos, são tornados. Acidentes naturais não estão na alçada do governo, mas o Brasil é meio diferente e o Homem não sugeriu que a tsunami era um aviso contra o descaso para com a Natureza? Já sentiram aonde isso pode chegar? Eu já, e tenho pensado em adiar um pouco minha estada anual em Itaparica. Ilha fica perto demais do mar e talvez seja mais prudente esperar a reeleição.


 


O Globo (Rio de Janeiro) 09/01/2005

O Globo (Rio de Janeiro), 09/01/2005