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Alpiste para os rolinhas

 

Sei que está bastante fora de voga faz algum tempo, mas sou dos que acreditam que, se fizemos uma promessa, devemos procurar cumpri-la. Quem teve o estoicismo, ou que outra razão atraia algum leitor, para ler esta coluna na semana passada deve recordar que prometi descrever o que esperava, com toda a honestidade, ser uma tarde empolgante, jogando alpiste para as rolinhas da Rua Dias Ferreira, aqui no Leblon. Tenho pouquíssima experiência no assunto, mas, depois de décadas numa profissão em que saber observar é indispensável, não vou dizer que sou bom repórter, não sou nem repórter mediano, mas conheço uns dois macetes operosamente aprendidos ao longo do tempo, peruando o trabalho dos craques e fazendo perguntinhas importunas.


A responsabilidade aumentou consideravelmente quando minha promessa despertou interesse em algumas pessoas, todas quase ansiosas em colaborar com minha missão, em diversas condições possíveis, desde assessoria técnica ornitológica a jogar alpiste também. Fui obrigado a usar expedientes variáveis para evitar que isso acontecesse. Nos tempos em que vivemos, o evento ultrapassaria em muito minha capacidade jornalística, pois o mínimo que iria acontecer seria o surgimento de grupos usando camisetas com a inscrição “Rolinhas Contra A Violência” e a organização de uma passeata - aqui o pessoal é muito chegado a uma camiseta e uma passeata como via de ação política. E, não sei, algo não me soa bem em “rolinhas contra a violência” e suspeitaria malícia em exortações quiçá inocentes, como “alimente uma rolinha hoje”, ou “dê alpiste pra rolinha”, vocês sabem como é cabeça suja nojenta de velho.


Cheguei a extremos, até. O irrepreensível escritor e meu particular amigo Rubem Fonseca me skypeou, neologismo pelo qual suplico perdão aos puristas, mas quer dizer conversar pelo computador através de um programa chamado Skype, indagando a hora e o local exatos em que se realizaria a distribuição de alpiste, porque ele, como de hábito embuçado, pretendia comparecer. (Sim, devo abrir estes parênteses para dizer que ele certamente não vai gostar, quando vir aqui que eu contei que ele tem Skype, mas nunca vou revelar o nome dele no sistema e, de qualquer forma, ele bloqueia qualquer um numa boa; querem ver, experimentem.) A presença dele é sempre bem-vinda em qualquer lugar e uma honra e alegria para mim, mas em tudo nesta vida há exceções e a distribuição de alpiste, receei, seria uma delas.


Vocês não sabem como é o Zé Rubem. Todo mundo pensa que sabe, mas não sabe. Eu o conheci (sorry, periferia) em Paris, faz muitos anos, e tenho certeza de que, no segundo dia em que saímos juntos, a gendarmerie já nos acompanhava a uma distância discreta. Ele apronta com a maior cara-de-pau e com certeza ia aparecer com a cabeça enterrada até os olhos num chapéu de pano e se apresentar a uns como Lúcio Mauro, a outros como Armando Nogueira e ainda a outros como um visitante húngaro incapaz de compreender ou falar uma só palavra em português com exceção de “banana”. Não ia dar certo e, no meio do furdúncio assim criado, ele arrumaria uma namorada, proeza que executa com instantaneidade fulminante, e desapareceria, me deixando com o pepino, o abacaxi, o angu de caroço, a batata quente e o que mais possa metaforizar a confusão. E depois me skypearia novamente para dizer que eu me revelara péssimo dador de alpiste para rolinhas e, além do mais, meu computador é de quinta categoria.


Não, tinha que ser uma experiência solitária e tão bem planejada quanto possível. Mas eu não podia prever a mão implacável do destino, que se preparava para me ministrar uma lição de que há muito devo vir precisando. Cheguei à esquina onde costumava ver sempre multidões desses populares peristerídeos (claro que eu não conhecia esta palavra; catei-a no dicionário e desta vez dou uma folga do exercício dominical a que lhes exorto sempre, de pegar o dicionário, pois usar o dicionário do computador é considerado comportamento antiesportivo, eu mesmo nem ligo para o Aurélio e o Houaiss que tenho instalados aqui - e a folga é passar-lhes o conhecimento sem o qual vocês não vão compreender como viveram até agora, qual seja o de que esse é o nome da família das rolinhas) e não vi nenhum. Perguntei a um chaveiro que tem cabine perto, ele me disse que as rolinhas andavam sumidas.


Como, andavam sumidas assim sem mais nem menos? Era o que eu ouvira, estamos em falta de rolinhas. Ele tinha idéia da razão? Não, não tinha, de repente elas não mais abundam como abundavam. Disse então a ele que ia dar um jeito nisso. Ia voltar logo mais com alpiste para derramar no chão e atrair de volta as rolinhas, era um esporte radical adequado a meu preparo físico. Ele riu. Rolinha come alpiste, claro, mas não curte muito, eu provavelmente ficaria desmoralizado com meu alpiste. Não, esquecesse aquilo, as rolinhas tinham sumido mesmo, só pintava uma ou outra de vez em quando.


Fiquei pensando nas razões para o desaparecimento. Seriam as rolinhas nordestinas, agora deportadas de volta pela prefeitura? Descobriu-se que fumar rolinha moída dá mais barato do que chá de fita cassete? Terão armado algum esquema de lavagem de dinheiro envolvendo rolinhas? Mistério que certamente jamais desvendarei e, meio deprimido, confesso-lhes que fracassei. Não comprei o alpiste, não me enchi de adrenalina como esperava, não lhes fiz uma narrativa arrepiante. E, como antecipei, aprendi uma lição de humildade. Se dar alpiste a rolinha é difícil, muito mais será governar, ainda mais quando, como eu, não se tem experiência. Era a desculpa que faltava para eu mudar minhas posições. Quando será que vão passar a creditar meu mensalão?


 


O Globo (Rio de Janeiro) 03/07/2005

O Globo (Rio de Janeiro), 03/07/2005