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Aliviando a mão

 

A voz rouca das ruas é fogo. Estou saindo da pastelaria aonde vou neuroticamente toda santa noite e compro uma porcariada que não tem mais tamanho, pego minha sacolinha, uma voz me chama, é uma jovem senhora que decidiu interpelar-me.


- Leio você todo domingo - diz ela.


- Muito obrigado.


- Sempre é bom, mas você está aliviando a mão. No domingo passado, você aliviou a mão. Não pode aliviar a mão, tem que dar cacete!


- Mas logo eu? Eu aliviando a mão? Eu vivo dizendo uma porção de coisas que...


- Eu sei, eu sei, sou leitora assídua. Mas você aliviou a mão.


- Mas o que é que você chama aliviar a mão? Você quer que eu xingue a mãe de alguém?


- Quero, quero! Você teria todo o meu apoio. Você teria o apoio de todo o Brasil!


- Não concordo. Não ia pegar bem eu xingar a mãe de ninguém e muito menos o Brasil inteiro ia me apoiar.


- Ia, ia! Você sabe disso, o Brasil inteiro ia te apoiar. E tem de xingar a mãe mesmo! São todos uns isso e aquilo! São todos uns aquilo e aquilo mais! Isso é o que eles são, tem que dizer com todas as letras!


Ela não usou bem “isso e aquilo”, devo esclarecer, usou umas coisinhas mais fortes, que fico com vergonha de reproduzir. Ponderei que não era correto xingar a mãe de ninguém pelo jornal, que já vinha criticando o governo há muito tempo, que nem gostava disso, mas eram os assuntos impostos pelo dia-a-dia. “Quero o direito de escrever umas amenidades, um domingo ou outro”, disse eu, arrependendo-me imediatamente depois.


- Quer dizer que até você está afrouxando! É o silêncio dos intelectuais, você caiu no silêncio dos intelectuais!


- Silêncio dos intelectuais? Como assim, eu...


- Caiu no silêncio dos intelectuais, e eu que pensava que você era diferente! Mas não, pela crônica deste domingo já se vê uma saída estratégica. Você está planejando uma saída estratégica! Isso não está certo com seus leitores, desculpe, é uma atitude de omissão, se curvando a pressões.


- Que pressão, não sei de nenhuma pressão.


- Sabe, sim, sabe que, se não parar de falar as coisas que vem falando, vai ser retirado do círculo dos intelectuais! E para você não deve ter coisa mais importante do que a vaidade de ser membro do círculo dos intelectuais.


- Que círculo de intelectuais? Existe um círculo de intelectuais, eu não sabia, eu...


- Claro que sabia. Eu posso ter sido enganada como sua leitora, achando que você era uma coisa e agora vendo que é outra.


- Espere aí, eu acho que você deve estar me confundindo. E nunca andei prometendo nada a ninguém.


- Mas agora se curvou ao silêncio dos intelectuais!


- Mas que sil...


- O silêncio dos intelectuais! Depois que os últimos vão tirando o corpo fora, aí é que a gente perde mesmo a esperança. Se já tínhamos perdido a esperança nos políticos, agora também perdemos a esperança nos intelectuais. Bem que sempre me disseram que não se pode confiar em intelectual. É nisso que dá. Mas eu ainda considero você uma exceção. Por enquanto, por enquanto. Vou esperar mais dois domingos.


- Muito obrigado outra vez, mas você vai esperar o quê?


- Cacetada firme, pauleira! Não tem nada de aliviar a mão, tem que descer o porrete! Olha lá, dou dois domingos. Se falhar, perdeu uma leitora. Assídua!


E foi se retirando com uma meia rabanada. Fiquei preocupado. Eu achava que vinha criticando de maneira incisiva a situação a que chegamos e a atuação dos nossos governantes. E que círculo de intelectuais seria aquele, ao qual certamente eu deveria pedir autorização para continuar a expor meus pontos de vista, que acredito serem o de muitos outros brasileiros? Não, bobagem, radicalismo dela. Certo, uma leitora em perfeito estado de funcionamento não se joga fora assim sem mais nem menos. Mas minha consciência estava em paz e eu escreveria crônicas sobre amenidades, chega de reclamar e criticar o tempo todo. Isso mesmo quis dizer ao vizinho que entrou comigo no elevador.


- Belo dia - comecei. - Não foi?


- É, fez uns belos dias aí. Deve ser por isso que você está aliviando a mão, não é?


- Eu, aliviando a mão? Eu...


- Eu compreendo - disse ele, me pondo a mão no ombro.


- Compreende o quê?


- O silêncio dos intelectuais - respondeu ele, antes de a porta por que saiu bater.


Entrei em casa pensativo. Não, eles não tinham razão. Não existe círculo de intelectuais nenhum, nem tem que ficar descendo o cacete coisa nenhuma. Ler os jornais, buscar amenidades. Hum, diz aqui que um ministro do Supremo está fazendo campanha para ser candidato. E diz que outro é o homem de Lula na Augusta Casa. Pensando bem, talvez eu precise me precatar contra esse silêncio dos intelectuais, tenho que parar de aliviar a mão.




O Globo (Rio de Janeiro) 04/12/2005

O Globo (Rio de Janeiro), 04/12/2005