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A ainda pouco lida poesia de Jorge de Lima

 

Quando duas pessoas falam do escritor Jorge de Lima, é certo que estejam se referindo à mesma pessoa, mas dificilmente estarão falando do mesmo poeta. Com efeito, o artista alagoano, cujo centenário de nascimento passou quase despercebido em 1995, representa, na literatura brasileira, a imagem do poeta em contínua mutação. Parnasiano medíocre e bem-comportado nos XIV alexandrinos (1914), regionalista na primeira onda do modernismo com Poemas (1927), Novos poemas (1929) e Poemas escolhidos (1932), místico-universal a partir de Tempo e eternidade (1935, co-autoria de Murilo Mendes), cosmogônico e barroco em Invenção de Orfeu (1952), Jorge de Lima - falecido em novembro de 1953 - sobreviveu a todas as transformações a que submeteu a própria obra e permanece hoje como um dos poucos poetas fundamentais da literatura brasileira do século 20.


Seu valor, no entanto, esteve longe de constituir consenso. Quatro vezes bateu à porta da Academia Brasileira de Letras e quatro vezes saiu de lá como simples mortal. Só no ano de 1937 tentou duas vezes: na primeira, perdeu de Barbosa Lima Sobrinho. Na segunda, por acabrunhantes 18 x 5, o vencedor foi outro poeta de constantes metamorfoses, o paulista Cassiano Ricardo. Àquela altura, Jorge de Lima há muito (desde 1930) deixara Alagoas, de onde viera ungido pelo epíteto de ''príncipe dos poetas'', e se estabelecera no Rio com fama de bom médico e de bom escritor. Já contabilizava dez títulos publicados, de poemas, ensaios e romances - dentre esses a tentativa surrealista de O anjo (1934) e a incursão engajada de Calunga (1935), texto que Otto Maria Carpeaux definiu como ''neonaturalista'' e que representou o namoro de Jorge de Lima com os princípios estéticos e ideológicos do ''romance de 30'', merecendo o livro, et por cause, intensos elogios de Jorge Amado.


Academia à parte, não foram poucos os louvores ao vate alagoano, provindos de nomes da expressão de um Mário de Andrade, de um Gilberto Freyre, de um Roger Bastide. Em 1939 veio a lume A poesia de Jorge de Lima, do crítico português Manuel Anselmo, entusiasmada leitura de Jorge com ênfase no arcabouço cristão que atravessava sua obra desde Tempo e eternidade. A partir daí, sucedeu um fenômeno curioso: avolumou-se a fortuna crítica do poeta, mas continuou rarefeita a circulação de sua poesia, confinada em edições quase clandestinas (algo análogo ocorreria com o grande ''amigo em Cristo'' Murilo Mendes).


Somente em 1949 foi publicada sua Obra poética (editora Getúlio Costa), organizada por Otto Maria Carpeaux e englobando dez livros em alentadas 659 páginas. Outra compilação de tal porte surgiria apenas em 1958, através da Obra completa (editora Aguilar), anunciada em dois volumes, dos quais apenas o primeiro, contendo a poesia e alguns ensaios, foi efetivamente impresso. Contos, teatro e romance continuam à espera de quem os reúna.


Aquilo que, para alguns, poderia soar como oportunismo - as metamorfoses do poeta, de acordo com o ar dos tempos - parece corresponder, em Jorge, a efetivas mutações de foro existencial, a partir de contínuas reflexões acerca do papel da arte e do artista. Isso, evidentemente, não isenta o poeta de certos equívocos, como bem assinalou Antônio Rangel Bandeira no arguto Jorge de Lima - o roteiro de uma contradição (São José, 1959). O ensaio, fugindo do tom laudatório, assinala como determinadas ambigüidades surgem não pelo confronto das fases do poeta, mas no interior de cada uma das etapas. Assim a representação do negro: intensíssima no período regionalista, oscilaria, no entanto, entre pólos de atração e repulsa, entre o endosso da miscigenação e o registro de certas reservas mais ou menos veladas a esse mesmo processo.


Num outro plano, também poderíamos apontar a discrepância entre o hermetismo de seu testamento poético, a Invenção de Orfeu, e o juízo condenatório da incomunicabilidade artística proferido por Jorge meses antes de publicar o poema. Mas, para além dessas incoerências (e será a coerência o melhor critério para avaliar a poesia?), importa ressaltar a contribuição radical de Jorge de Lima para a formação e a consolidação da linguagem poética de nossa modernidade. Minimizemos a fase parnasiana, cuja luz só nos chega, esmaecida, através dos versos do famoso soneto O acendedor de lampiões; detenhamo-nos na deliciosa exuberância rítmica de Essa negra Fulô; apreciemos, na guinada do plano telúrico para o místico, a inventividade lírica de peças como Distribuição da poesia e Amada, vem, de Tempo e eternidade; admiremos o exemplar domínio e a revitalização da forma fixa no Livro de sonetos (1949), antes de nos abeirarmos desse turbilhão de altíssimos e baixíssimos que é Invenção de Orfeu - texto de mais de 11 mil versos com enorme dispêndio verbal para, às vezes, alcançar culminâncias de expressão poética, a exemplo de navios que, como disse em outro contexto o próprio Jorge de Lima, gastam uma tonelada de carvão para recolher dois ramos de orquídeas.


Deve o leitor, portanto, preparar-se para uma árdua travessia, caso se disponha a percorrer toda Invenção de Orfeu, obra recém-reeditada com excelente prefácio do escritor Cláudio Murilo. Mas, se de um lado, o poeta adverte ''Não procureis qualquer nexo naquilo/ que os poetas pronunciam acordados'', de outro - o lado de quem embarca na aventura da poesia - sua voz ressoa em suave comunhão: ''Irmão que vindes, se sois também poeta/ eu tenho para vós inda uma rosa''.




Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 03/08/2005

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 03/08/2005