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Admirável ano novo

 

Era comum, talvez ainda seja, que o infeliz plantado numa redação na véspera de Natal, com uma página somente esperando uma matéria dele para rodar, não resista ao título que, em temível concerto telepático, também vem à cabeça dos outros na mesma situação, e taque lá “Admirável Mundo Novo”, tirado, como sabemos, do livro do mesmo título de Aldous Huxley. Aqui, fiz uma inovação, na esperança de que ela não ocorra também a mais de dez por cento dos aflitos. Boto “ano”, em vez de “mundo” porque é cada vez mais assim. O que era para acontecer somente daqui a décadas acontece amanhã e, descontada a crise, creio que certos setores, notadamente do mercado de eletrônicos às vezes pisam no pé das novidades, para que elas não terminem embotando a capacidade de absorção ou compra do consumidor.


Quando eu entrei em jornal, encontrei vários colegas bem coroas, já a poucos anos da aposentadoria. Os muito mais velhos se lembravam de grandes jornalistas que escreviam seus artigos incendiários à caneta e a mais ousada inovação que adotavam era a caneta-tinteiro. Ríamos deles, mas a única novidade tecnológica que incomodava os jonalistas “modernos” era uma periódica troca de marcas de máquina. De Underwood para Remington, quase um motim; de Remington para Olivetti, resistências tão severas que as duas marcas às vezes coexistiam nas redações. Aquela IBM de bolinha nunca passou das escrivaninhas de secretárias chiques. Aliás, ninguém mais sabe o que era a IBM de bolinha. Uma vez, há muitos muitos anos, quando chegando de volta dos Estados Unidos, falei sobre as máquinas de bolinha e fui tido na conta de mentiroso cínico. Outra vez, faz poucos dias, quis descrever uma máquina de bolinha a uma moça de 25 anos e ela não me chamou de mentiroso, só não entendeu nada e ficou com um ar de pena de mim.


Estava pensando em abordar doenças novas que nos ameaçam, mas aí pensei de novo e não achei essa conversa lá muito estimulante, para um dia de Natal. Só faço menção a uma delas porque é chique e esta coluna não vai correr o risco de deixar escapulir de seus leitores uma nova doença chique, para a qual já devem estar-se formando alguns especialistas. A doença a gente já conhece, novidade é o nome: ortorexia. Não é sinônimo, é só parenta do ano. Ortorexia vem a ser, mais ou menos, a mania exagerada de ingerir a comida correta, segundo seu conteúdo nutritivo, a hora em que é ingerida, mastigação, o ambiente, o estado de espírito, a origem dos alimentos e, enfim, os inesgotáveis problemas que podem acometer o ortoréxico, que no futuro, dizem-me cá, deverá andar com uma expécie de pochete ortoréxica, contendo o mínimo essencial para o laborioso ato de comer: balança, analisador de teor de acidez, detetor de agrotóxicos, detetor de hormônios e quem mais ousa adivinhar o quê. Talvez uma empresa lance o Eat-Rite, sucesso absoluto de vendas, até que a Apple anuncie o IPot e todo dia pinte um modelo novo, vai ver um que possa até almoçar pelo dono, se faltar tempo, em época na qual ele é tão escasso e, assim mesmo ou por isso mesmo, gastam-se fortunas para matá-lo.


Imagino que pensem que vai chiste nisto, mas não vai. Por exemplo, talvez a “degola” demore mais alguns anos, mas o casamento, segundo o conhecemos, mesmo na pluralidade de formas com que vem tentando adaptar-se, vai acabar, já deve ter começado a acabar. Isto porque muitos casamentos, suponho que a maioria deles em nossa sociedade e em diversas outras, se apóiam, ainda que por vício, em conceitos como a fidelidade, a sinceridade ou lealdade e a confiança. Tudo isso está indo rapidamente para o beleléu, porque nenhuma dessas virtudes é integralmente observada por homens ou mulheres, pois que ninguém vira santo apenas porque casou. Se começar a haver sensores, como já existem e não são tão raros assim, que monitorem certos dados vitais, o(a) ciumento(a), ambos vão saber, através de um programinha esperto que processe esses dados, o que foi que ela sentiu quando dançou com fulaninho e o que foi que se passou nele, na hora da bitoquinha em sicraninha. Palavras de arrependimento, que terrível engano, não foi nada disso que você pensou – vai tudo isso para o espaço, ciência é ciência.


Em setores, digamos, acessórios, existe de tudo, grande parte já à venda no Japão, muitas vezes com versões diversas. Celular com localizador é manjadissimo. O moço ou a moça no motel e o corno ou a corna sabendo de tudo, ou até assistindo, porque uma hora destas aparece celular com filmadora de controle remoto. Chips minúsculos emitindo sinais para localização, embutidos no cós da cueca ou da calcinha. Ou seja, periga surgir próspero negócio para quem precisa faturar uns extras no escritório: aluguel de estacionamento de cueca ou calcinha. Tokomoyo chega ao escritório, sabe que está de cueca grampeada, paga a Toshito para trocarem de cueca no fim de tarde, porque Tokomoyo vai finalmente traçar Fushita, e Fushita, que também finge que não sabe que está de calcinha grampeada, já fez o mesmo acerto com Okomoko, porque Pushita também está muito a fim de traçar Tokomoyo. E, assim, as horas extras de um são extras diversas das de outro. Imaginem que mercado, imaginem que revolução de costumes. Claro, haverá quem resista e surgirão inúmeras tribos urbanas monógamas e fiéis, mas logo virarão exóticas e objetos da cobiça dos grampeados. Vencer a virtude de uma desgrampeada, deverá render um prazer sedutor meio pervertido, meio Ligações perigosas. E pegar um desgrampeado há se ser façanha igualmente valorizada. Mas, com a localização e a espionagem de todos por todo mundo, acabará de vez a privacidade, não só de atos, como também de emoções muito íntimas, desconhecidas, talvez, do próprio portador. Continuo preferindo não estar aqui nessa época.


O Globo (RJ) 28/12/2008

O Globo (RJ), 28/12/2008