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Adeus, Maria Candelária

 

Numa época, fez grande sucesso no Brasil a marchinha carnavalesca, do compositor Blecaute, que falava de uma certa Maria Candelária. Quem era? “É alta funcionária”, informava a letra, acrescentando que Maria Candelária tinha entrado no serviço público “de paraquedas”, ou seja, por algum favor político. A seguir, entrava em detalhes sobre a atividade da Maria Candelária, que “trabalhava de fazer dó”. O expediente começava ao meio-dia; à uma da tarde Maria Candelária ia ao dentista, às duas, ia ao café, às três à modista; às quatro assinava o ponto e dava no pé. Concluía Blecaute: “Que grande vigarista que ela é”.

A popularidade da música é explicável: corresponde à imagem que, desde há muito tempo, os brasileiros têm do funcionalismo público, uma imagem que vale a pena lembrar às vésperas do 28 de outubro, Dia do Funcionário Público, uma data instituída em 1943 pelo presidente Getúlio Vargas. A imagem é exatamente esta: de uma pessoa que conseguiu uma boquinha, que é bem paga com dinheiro público, mas que não faz nada. Um estereótipo, que, como todos os estereótipos, é uma mistura de observação da realidade com preconceito puro e simples.

Não há dúvida de que no Brasil a fronteira entre público e privado sempre foi tênue, algo que nos lembra as capitanias hereditárias. Não são poucos os políticos que tratam a administração como se fosse propriedade deles. A desculpa para isso está sintetizada na famosa expressão cargos de confiança, vagas que são preenchidas pela simples indicação do titular de uma pasta ou de alguém a ele ligado. É claro que, muitas vezes, esta é a solução para a falta de pessoal que é crônica no serviço público brasileiro; não são poucos os técnicos experientes que, à falta de um dispositivo melhor, foram recrutados dessa maneira.

Mas vejam o paradoxo da própria expressão: se existem cargos de confiança, o que são os outros? Cargos de desconfiança? Desta maneira, introduz-se uma cisão na esfera pública, entre as lampeiras Marias Candelárias e o resto. Que, aos olhos de muitos, acabam sendo incluídos no rótulo geral da vagabundagem. Tremenda injustiça. Ao menos na área em que por muitos anos trabalhei, a saúde pública, isso não era verdade. Vi gente labutando arduamente em postos de saúde, em hospitais, em campanhas de vacinação, ganhando salários ínfimos, lutando contra a falta de recursos. Era gente que acreditava no que fazia, que transformava a saúde da população em uma verdadeira causa.

Alguns dirão que se trata de casos excepcionais, que trabalho de verdade só na área privada. De novo, isso não corresponde à realidade. Temos empresas públicas que, sob qualquer critério de mercado, são bem-sucedidas e que atraem inclusive investidores estrangeiros. Esta discussão é importante, porque estamos às vésperas de uma troca de governo. A nova administração certamente manterá o rumo geral da economia, mas terá de fazer reformas diversas: a tributária e outras. Seria muito importante que a reforma do serviço público fosse incluída nesse rol.

A palavra-chave aí é profissionalização. E profissionalização se consegue mediante um processo de seleção transparente e rigoroso e mediante uma carreira que envolva estímulos para o aperfeiçoamento pessoal. Quanto à Maria Candelária, ela pode continuar indo ao dentista (saúde oral é coisa importante), ao café, à modista, mas de preferência financiada por um marido rico. No Brasil que os brasileiros querem, não há lugar para Marias Candelárias no serviço público.

Que Tarso Genro é um expoente  da cultura brasileira e gaúcha, todo mundo sabia. Agora, ele acaba de confirmá-lo,com a indicação de Luiz Antonio de Assis Brasil para Secretário de Cultura. Grande nome, antecipando uma grande gestão.

Zero Hora (RS), 26/10/2010