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Abelardo e Heloísa

 

Naquela manhã de outono concebo mortos, fantasmas. Dou-lhes formas, vejo-os em cada canto. Eles insistem em me perseguir enquanto desço a Rue de La Montagne Sainte-Geneviève. Esses espíritos, ansiosos por identificar-se, atropelam contudo as palavras. Descubro que são discípulos de Abelardo, na expectativa de que o monge retorne ao bairro latino. Como por milagre, Abelardo surge, incerto quanto à modernidade daquela mulher brasileira, à frente de sua tribo. Ele me fala como se cruzasse o pátio da Sorbonne, e fosse eu sua alma. Ensina-me, assim, a esgrimir princípios metafísicos, sempre úteis em uma época incrédula. Indica-me que ruelas visitar, se de verdade quero reconstituir os restos arquitetônicos da Paris que ele conhecera, antes de sua morte.


Integro-me, pois, ao séquito de fanfarrões e funâmbulos na Paris cinzenta, cortada por insistente brisa. Abelardo é condescendente com meu falso júbilo, aceita-me. Não é fácil, contudo, que eu me ajuste à mente de um homem do século 12. Ele, porém, ciente dos meus sobressaltos, tem o olhar tão profundo quanto a mirada posta na cidade. Sob seus cuidados, percorremos a Cloître de Notre-Dame, coração da mítica Paris. Submissos à tal misteriosa geografia, à guisa de brincadeira, como se ainda estivéssemos no passado, simulamos cruzar o muro medieval e cada uma das suas quatro portas.


Frente à Catedral de Notre-Dame, já não burlamos dos sentimentos canônicos que outrora banharam o perfeito equilíbrio da sua fachada. Naquelas pedras reside uma eloqüência divina que abala qualquer empertigado heretismo.


Os sinos repicam e a paixão pela cidade nos exalta. Mas as palavras de Abelardo, que parece ocupar a tribuna, amortecem nossos excessos. A voz daquele homem ecoa como se estivesse de novo confrontando-se com a retórica implacável de Guillaume de Champaux e voltasse por isso a sofrer. A pungente agonia de Abelardo logo cessa de afligir-nos, ao caminharmos garbosos pela Rue Des Chantres. A cada passo vencemos a Paris que Abelardo tanto amava, enquanto amava Heloísa às escondidas, antes da sua castração.


Guio Abelardo e seus estudantes pela cidade, que lhes parece desconhecida, passados tantos séculos. Modernizo-lhes a memória com delicada cautela. Na esquina de Saint-Michel, insisto em prestar reverências à Dame à la licorne que, encarcerada no Museu de Cluny, mira-se ao espelho sob a custódia do enigma que lhe rege a vida e Paris ao mesmo tempo.


Abelardo e seus seguidores se ressentem ante as vicissitudes arquitetônicas de uma cidade que se ajustou à demanda civilizatória do tempo. Mas, para fazer-lhes esquecer a brevidade humana, levo-os à Rue du Bac, enalteço-lhes assim os sentidos. Afinal, as delícias culinárias, expostas nas calçadas, hão de lhes despertar o paladar e as peripécias acadêmicas.


Aquele espetáculo, aos olhos de Abelardo, de imediato torna-se verbal, cobra-lhe metáforas, teologias. Ele proclama a presença de Deus e do amor no repasto dos famintos, que somos nós. Tudo, em Paris, vizinho do humano, confunde-se com corpo e alma. Ser andarilho em suas avenidas, familiarizar-se com suas veias, era como vencer as medidas da própria casa.


À mesa do Chez Allard, na Rue Saint André des Arts, Abelardo ri finalmente, assim como nós, servos de todas as luxúrias. Seguimos-lhe a descontração fugaz. Sob o efeito do vinho, e da paixão por Heloísa, que o aguarda em algum grotão da história, submetemo-nos, devagar, a certa ordem de grandeza que paira sobre os tetos de Paris.


Nós nos miramos, então, já antecipando a despedida, que retalha o coração. Resta-nos aceitar que somos irremediavelmente filhos de todos os séculos. Da arte dos dias vencidos que engendraram a civilização e a barbárie. Neste caso, a que barricada pertencemos? Acaso basta saber que Paris resguarda, ainda hoje, a altiva e perturbadora beleza com que vimos sonhando desde o paraíso?


 


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 12/04/2006

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 12/04/2006