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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Antonio Cicero

O currículo de Eduardo Giannetti da Fonseca é impressionante. Graduado em Economia e Ciências sociais pela USP, na década de 80, ele fez Doutorado em Economia pela Universidade de Cambridge, de 1981 a 1987; foi Professor de História do Pensamento Econômico na Faculdade de Economia da Universidade de Cambridge, de 1984 a 87; voltando ao Brasil, foi Professor da Faculdade de Economia da USP, de 1988 a 1999, sendo que, em 1993 foi conferencista em Cambridge, onde escreveu o livro Felicidade: diálogos sobre o bem-estar na civilização; em 2001, ele foi pesquisador do Centre for Brazilian Studies, da Universidade de Oxford; e foi Professor titular do Insper, de São Paulo, de 2000 a 2014.

 

O livro sobre o qual falaremos em primeiro lugar é o Auto-engano, escrito na bela Tiradentes, no interior de Minas Gerais, lugar em que Giannetti se sente tão inspirado a escrever que lá já produziu nada menos de seis livros, desde Auto-engano até O anel de Giges.

 

Aliás, Giannetti tem muitos livros publicados. Apesar da originalidade do seu pensamento e de sua vasta erudição filosófica e humanista, ele consegue dotar os seus texto de grande vivacidade e clareza. Citarei a seguir apenas os que creio serem os mais famosos. O primeiro, de 1991, é Beliefs in action: economic philosophy and social change (pela Cambridge University, originalmente escrito em inglês e traduzido para português em 2003).

 

Outro livro importante é Vícios privados, benefícios públicos?, que ganhou o Prêmio Jabuti em 1993 e foi traduzido para o espanhol em 2014. 

 

Outro é As partes & o todo, que ganhou o Prêmio Jabuti em 1995. 

 

Outro – que creio ser o mais famoso -- é Auto-engano, de 1997, que foi traduzido para inglês, italiano, holandês e japonês.

 

Em 2000, ele publicou Nada é tudo, para o qual me orgulho de ter escrito a orelha.

 

Em 2007 publicou O valor do amanhã: ensaio sobre a natureza dos juros, transformado em série de dez episódios, exibidos no programa Fantástico da TV Globo em 2007.

 

Também importante é Trópicos utópicos: uma perspectiva brasileira da crise civilizatória, que recebeu o Prêmio Associação Paulista de Críticos de Arte, em 2016.

 

Finalmente, quero mencionar O Elogio do vira lata e outros ensaios, de 2018, e O anel de Giges: uma fantasia ética, de 2020.

 

Os diferentes ensaios de Giannetti tratam de economia, ciências sociais, lógica e, sobretudo, filosofia. “Sou economista e sociólogo”, diz ele, “mas minha paixão de estudo real é a Filosofia”. Essa afirmação nos faz lembrar que grande parte do pensamento econômico surgiu a partir de filósofos dos séculos XVIII e XIX, como Adam Smith, David Hume, John Stuart Mill, Karl Marx e Alfred Marshall pensadores que são, aliás, frequentemente citados na obra de Giannetti, que é também um pesquisador na área da história das ideias. 

 

Como não teríamos tempo aqui para tratar detalhadamente sequer dos oito livros que acabo de citar, falarei apenas de duas obras, que acredito que nos deem uma ideia geral da maneira de pensar de Giannetti. O primeiro é o Auto-engano, que é um volume inteiro e que, tendo sido o mais traduzido para diferentes línguas, creio ser o mais apreciado internacionalmente; o segundo é um ensaio chamado O elogio do vira-lata. Na verdade, embora esse ensaio seja o título do livro que o contém, trata-se apenas de um dos 25 ensaios que compõem esse livro. 

 

  1. Sobre Auto-engano, de Eduardo Giannetti

 

Em relação ao Auto-engano, Giannetti conta que escrevê-lo significou o desafio de pensar diretamente sobre o problema que o instigava, em vez de esconder-se “sob o manto protetor do que Mário de Andrade batizou certa feita, referindo-se a um verdadeiro vício ocupacional do intelectual brasileiro, de ‘exposição sedentária de doutrinas alheias’. Daí a opção de escrever um livro que não pressupõe nenhum tipo de conhecimento prévio especializado”. Daí também a notável  originalidade dessa obra.

 

“Do auto-engano”, observa Giannetti, “pode-se dizer o que disseram Sócrates do bem e da virtude e Agostinho do tempo: todos nos imaginamos familiarizados com esses assuntos, mas somos incapazes de entendê-los de forma clara e satisfatória”. Na verdade, “o auto-engano não é a ignorância simples de não saber e  reconhecer que não se sabe. Ele é a pretensão ilusória e infundada do auto-conhecimento – o imaginar que se tem esse conhecimento sem tê-lo, o acreditar convicto que seduz e ofusca, a fé febril que arrebata, a certeza de saber sem saber”.

 

Já no primeiro capítulo desse livro, antes de tratar do auto-engano em si, Giannetti afirma que

 

a arte do engano – o uso pelo organismo de traços morfológicos e de padrões de comportamento capazes de iludir e driblar os sistemas de ataque e defesa de outros seres vivos – é parte expressiva do arsenal de sobrevivência e reprodução no mundo natural.

 

É interessante que não apenas Giannetti fale sobre a importância do engano no reino animal, mas mostre que até mesmo vegetais usam a arte do engano. Assim, ele chama atenção para o fato de que “diferentes tipos de orquídeas especializaram-se em atrair diferentes tipos de insetos, seduzindo-os com estímulos sexuais que evocam o aspecto, a coloração e o odor das respectivas fêmeas. Acontece que incitar o inseto a tão-somente acercar-se da flor, atraído pela promessa de sexo, não basta. Para que a polinização seja bem-sucedida ele precisa se animar a montar na flor, senti-la de perto e partir para uma pseudocópula com ela. Só assim os sacos de pólen se fixarão em seu corpo e serão efetivamente carregados e misturados ao órgão sexual de outra orquídea”.

 

No que diz respeito aos seres humanos, Giannetti observa que “a conquista do dom da linguagem representou um verdadeiro big-bang na expansão do universo do engano”. É que, continua ele, “quando nos voltamos para as relações intra-espécie do animal humano, incluído é claro as reflexões e confabulações do indivíduo a sós consigo mesmo, seria difícil superestimar a vastidão do campo de possibilidades de engano e auto-engano propiciado pelo uso da linguagem”.

 

Entre os seres humanos, uma das formas mais comuns de auto-engano é o sonho. “A universalidade do sonho entre os homens”, diz Giannetti, “não importando época, etnia ou cultura, dificilmente poderia ser contestada”. O sonho é “algo vivido intensamente como real e genuíno enquanto sonhamos, mas que depois se revela apenas sonho quando despertamos. A mente de quem sonha embarca e mergulha inteiramente na verdade subjetiva da ficção que ela mesma fabula”. 

  

Pois bem, a partir dessa consideração do sonho, Giannetti observa que “a boa obra de ficção narrativa é aquela que sonha um sonho por nós. Ao embarcar no transporte ficcional da arte é como se estivéssemos tirando férias de nossa subjetividade no que ela tem de concreta e pessoal”. O mesmo ocorre quando mergulhamos em outras peças artísticas, como um poema, uma peça de teatro ou um filme. “Entre o apagar e o acender das luzes do espetáculo”, observa Giannetti, “o espectador sonha acordado que é outro, como se estivesse sendo sonhado por ele”.   

 

Quanto ao auto-engano, que são mentiras que contamos para nós mesmos e nas quais acreditamos como se fossem sonhos que estivéssemos a sonhar, Giannetti chama atenção para o fato de que ele não pode ser simplesmente aprovado ou rejeitado. “O enganador auto-enganado”, diz ele, “convencido sinceramente do seu próprio engano, é uma máquina de enganar mais habilidosa e competente em sua arte do que o enganador frio e calculista [...]. Para que sua mente não seja lida e decifrada pelos demais [...], o enganador embarca em suas próprias mentiras, deixa-se levar de modo gradual e crescente por elas e, enfim, passa a acreditar nelas com toda a inocência e boa-fé deste mundo”. 

 

É possível, por exemplo, que alguém que pretenda ser um poeta reconhecido – um verdadeiro poeta – não tenha nenhuma certeza de sê-lo e, no entanto, dedique grande parte de sua vida a escrever poesia. É possível que ele jamais seja – e jamais mereça ser – reconhecido como um grande poeta. Por outro lado, é possível que ele acabe sendo universalmente reconhecido como um grande poeta. Pois bem, ao falar desse assunto, Giannetti lembra que Platão, num trecho da República (497d) afirma que “todas as grandes tentativas são arriscadas e é verdadeiro o provérbio segundo o qual aquilo que vale a pena nunca é fácil”.

 

Talvez o exemplo mais concretamente convincente dado por Giannetti do sentido positivo que o auto-engano é capaz de ter seja o de Paul Gauguin que, a certa altura de sua vida, “decidiu largar um emprego bem remunerado no mercado financeiro, abandonar esposa e filhos pequenos, desligar-se de tudo e de todos, e ir viver sozinho sua paixão pela pintura e pelo sensualismo dos trópicos nas ilhas remotas do Taiti”. Ao fazê-lo, ele apostou no seu talento de pintor. Mas, como diz Giannetti, “o problema é que Gauguin, no momento da aposta, ainda não era Gauguin – e ninguém poderia saber com um mínimo de segurança que seria”. Gauguin poderia ter estado errado na sua aposta: mas acabou estando certo. E aqui Giannetti lembra da afirmação de Wittgenstein de que “se as pessoas não fizessem ocasionalmente coisas tolas, nada inteligente jamais seria feito”. 

 

De toda maneira, para nós, hoje em dia, é claro que Gauguin acreditou sinceramente que era um verdadeiro pintor. De todo modo, o auto-engano, como diz Giannetti, “é incompatível com a intenção consciente de enganar-se a si próprio”. De fato, segundo ele, “A mentira que contamos em silêncio para nós mesmos não mente, seduz. Ela se reveste do semblante da verdade para melhor mentir”. Com efeito, fingir não basta. “O imperativo número um da pessoa ambiciosa em qualquer área de atividade é acreditar em si própria”.

 

Segundo Giannetti, na mente do homem “curado” do auto-engano “nenhuma ilusão, confortadora ou não, encontraria abrigo no solo austero de sua racionalidade gelada. Toda concentração excessiva de valor seria imediatamente suspeita”. E pergunta: “sem o auto-engano, em suma, que é o animal humano além de uma ‘besta sadia, cadáver adiado que procria?’” E continua: “entediado e solitário em seu niilismo impecável, fruto da máxima retidão lógica e cognitiva, sua única saída agora seria buscar num autoengano intra-orgânico o antídoto químico que neutralizasse a ‘cura’, desfizesse o engano e lhe restituísse o dom do auto-engano intrapsíquico”.

                                                                                                                                                   

Em determinado momento, Giannetti se pergunta: “o que acontece quando o sujeito do conhecimento volta-se da natureza externa para si próprio?” Quando, por exemplo, um cientista se interessa em conhecer sua mente particular? Na verdade, diz ele, “ o que parece realmente inconcebível é a noção de que a experiência subjetiva seja idêntica à configuração objetiva correspondente no cérebro ou possa ser de algum modo reduzida a ela. Não é”. Há um hiato intransponível entre o ver de fora da abordagem científica e o ver de dentro de quem sente, pensa e vê. Por mais que avance a análise objetiva dos processos neurológicos, por mais que se aprimorem as técnicas de observação da ressonância magnética, da eletrencefalografia e da neurovisualização em geral, o conhecimento científico gerado continuará sendo inescapavelmente externo à experiência de que está sendo investigado”.

 

De fato, “Se um neurocirurgião abrir o meu cérebro, ele poderá examinar objetivamente o que há lá dentro. A mente, contudo, não pode ser aberta e nem o mental diretamente examinado”. Há, nesse sentido, uma imensa diferença entre o cérebro e a mente. “O mundo em que vivemos – o mundo vivido por dentro – pertence a outro mundo”. Assim, “o avanço do saber científico no auto-entendimento humano poderá revelar que muito – ou, no limite, a totalidade – do que imaginamos estar fazendo por vontade e iniciativa próprias em nossas vidas está, na verdade, sendo feito em nós pelo funcionamento autonômico do sistema nervoso e por uma sucessão de configurações físico-neurológicas em nossos cérebros”.

 

Ao mesmo tempo, “vivemos, de modo indeclinável, imersos em subjetividade. As perguntas fundamentais do autoconhecimento – quem sou? O que realmente desejo? O que devo fazer de minha vida? Qual o sentido de tudo isso?—estão fora do escopo e do projeto constitutivo da ciência”. A verdade é que essas questões “parecem conter um elemento intratável que as torna singularmente escorregadias e avessas a um encaminhamento confiável do ponto de vista cognitivo”. Giannetti observa que “a conclusão básica dos que se dedicaram seriamente à busca do autoconhecimento parece bem sintetizada na sentença do filósofo austríaco Wittgenstein: “Nada é tão difícil quanto não se enganar a si próprio’”.

 

Tem razão Giannetti quando comenta que “por mais que eu busque sair de mim e encontrar um ponto de vista externo, que me permita um saber isento e fidedigno de minha vida mental/emocional ou de meu caráter, não tenho como deixar de sujeitar o objeto de minha introspecção à minha própria subjetividade. A observação de si interage e funde-se rudemente com o observado. A interpretação é o texto”. 

 

“Como entender a propensão ao auto-engano?” pergunta-se Giannetti; e responde: as reflexões do “homem subterrâneo” retratado por Dostoievski oferecem um bom ponto de partida”. E cita:

 

Nas lembranças de cada homem há coisas que ele não revelará para todos, mas apenas para seus amigos. Há outras coisas que ele não revelará mesmo para seus amigos, mas apenas para si próprio, e ainda somente com a promessa de manter segredo. Finalmente, há algumas coisas que um homem teme revelar até para si mesmo, e qualquer homem honesto acumula um número bem considerável de tais coisas. Quer dizer, quanto mais respeitável é um homem, mais dessas coisas ele tem.

 

Isso significa, segundo Giannetti, que “o fulcro do auto-engano não está no esforço de cada um em parecer o que não é. Ele reside na capacidade que temos de sentir e de acreditar de boa-fé que somos o que não somos”. De fato, “a mentira que contamos em silêncio para nós mesmos não mente, seduz. Ela se reveste do semblante da verdade para melhor mentir”.

 

“O auto-engano”, afirma Giannetti, “é incompatível com a intenção consciente de enganar-se a si próprio. Pela sua própria natureza reflexiva e auto-referente, ele não pode ser deliberado ou planejado de forma calculada, como são os exemplos mais notórios de blefe, trpaça, fraude e engano de terceiros. A noção de auto-engano voluntário e deliberado – no sentido em que o mentiroso trama e calcula sua próxima mentira – é uma contradição lógica”.

 

Com toda razão, Giannetti afirma que “as mentiras que contamos para os outros podem ser – e com frequência são – escolhidas e premeditadas. As que contamos para nós mesmos jamais o são. Ninguém escolhe o disfarce íntimo ou a mentira secreta com que se ilude, se ludibria e embala a si mesmo. O auto-engano viceja em câmara escura”.

 

Na verdade, para que uma pessoa se convença “de que vale a pena apostar algo numa determinada estratégia de ascensão e liderança na vida prática”, isto é, “para embalar o ouvido interno e empolgar a plateia interior, a música precisa vir de dentro. Ela precisa seduzir e nos convencer sinceramente de que sabemos o que queremos, merecemos o que pleiteamos e estamos justificados, aos nossos próprios olhos, em nutrir tais pretensões”. De fato, como diz Giannetti, “o prometer apaixonado engana mas não mente. A melhor maneira de enganar o outro consiste em estar auto-enganado”.

 

  1. Sobre “O elogio do vira-lata”, de Eduardo Giannetti

    

Segundo Eduardo Giannetti, “os primeiros filhos de portugueses nascidos na Terra de Santa Cruz, quase todos frutos de relações fortuitas entre conquistadores e índias nativas ou escravas africanas importadas em maior número a partir de meados do século XVI, sentiam vergonha de ser quem eram. Esses filhos de portugueses eram chamados “mazombos”. “Mazombo”, palavra que vem do quimbundo angolano, quer dizer, explica-nos Giannetti, “grosseiro, atrasado, bruto, iletrado”.

O progresso que aparentemente a Lei Áurea e a proclamação da República representavam não nos levou muito longe. Como diz Giannetti, “o absurdo descaso e degradação em que passaram a ter de viver os ex-escravos, criminosamente abandonados à próprio sorte depois de séculos da mais terrível e cruel opressão e o tremendo fosso econômico que viera se abrindo desde meados do século XIX – e continuava a crescer a olhos vistos – entre um Brasil rural e jeca-tatu, de um lado, e a pujante locomotiva industrial estadunidense de outro [...] feria a autoestima da nacionalidade e cobrava, se não respostas, ao menos racionalizações”.

Para muitos intelectuais, a miscigenação racial era a causa daquilo que consideravam ser a degenerescência brasileira. Giannetti mostra que o biólogo suíço Jean Louis Agassiz, entre outros, afirmou que “qualquer um que duvide dos males da mistura de raças [...] venha ao Brasil. Não poderá negar a deterioração decorrente da amálgama das raças mais geral aqui do que em qualquer outro país do mundo, e que vai apagando rapidamente as melhores qualidades do branco, do negro e do índio, deixando um tipo indefinido, híbrido, deficiente em energia física e mental”.

Giannetti lembra que Nelson Rodrigues, que era fanático pelo futebol brasileiro, dizia que “qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas inibições e se põe em estado de graça, é algo de único em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção: -- temos dons em excesso”. Segundo ele, A raiz do fracasso era a falta de “fé em si mesmo”. O nosso único grande e único inimigo, declarou, residia no que “eu poderia chamar de ‘complexo de vira-latas’”. E explicou: “Por ‘complexo de vira-latas’ entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isso em todos os setores e, sobretudo, no futebol”.

Entretanto, a conquista da taça Jules Rimet em Estocolmo fizera milagres. O efeito da grande vitória transformava tudo “Já ninguém mais tem vergonha de sua condição nacional”, celebrou Nelson Rodrigues, “e as moças na rua [...] andam pelas calçadas com um charme de Joana d’Arc. O povo já não se julga mais um vira-lata”.

Mas quem é, o vira-lata? “A definição do termo remete”, segundo Giannetti, “a três acepções básicas: “cão ou cadela sem raça definida” (literal); “qualquer animal doméstico sem raça definida (por extensão); e “pessoa sem classe; sem-vergonha” (figurado)”. Como diz Giannetti, “a língua trai o absurdo preconceito. Tudo se passa como se o mero fato de alguém ter uma origem racial mista representasse, por si só, uma nódoa ou um traço aviltante; como se o uso do apelativo “mongrel/vira-lata” bastasse para servir de insulto ou calúnia. O vira-lata como xingamento”. 

“A conclusão é severa”, conclui Giannetti, “porém inevitável. O vira-lata é essencialmente o mestiço: os brasileiros “desrraçados” de qualquer cor”. E prossegue: “a depreciação do vira-lata inerente ao complexo que leva o nome dele carrega como premissa tácita o culto do ideal de pureza racial, beleza estética, virtude e racionalidade nos moldes definidos especialmente pela vertente anglo-americana da civilização cristã ocidental”.

Giannetti conclui, com toda razão, “que uma verdade singela se impõe: o Brasil é vira-lata. Não, é claro, no sentido do complexo que leva esse nome, mas no sentido que importa, ou seja, no reconhecimento da nossa natureza mestiça no corpo, na alma e no jeito de ser. Na penosa construção simbólica de nós mesmos, a  tarefa maior é virar o ‘complexo de vira-latas’ do avesso. Transformar em virtude libertadora o que foi antes estigmatizado como capital fraqueza. Recolher a nossa pseudomaldição e dar-lhe um sinal decididamente positivo”. 

Como dizia corretamente o modernista Oswald de Andrade, “somos campeões da miscigenação tanto da raça como da cultura, e como não deixou de notar Albert Camus em anotação feita no seu diário de viagem ao visitar o Brasil em 1949: “País em que as estações se confundem umas com as outras; onde a vegetação inextrincável torna-se disforme; onde os sangues se misturam a tal ponto que a alma perdeu seus limites”.

Como dizia o samba de Alberto Ribeiro cantado por Carmen Miranda, “eu gosto muito de cachorro vagabundo que anda sozinho no mundo sem coleira e sem patrão; gosto de cachorro de sarjeta que quando escuta a corneta sai atrás do batalhão”.

E assim termina Giannetti: “em meio à preciariedade das condições de  vida para a maioria do emaranhado político e institucional da nossa capenga República, o vira-lata matném viva a chama de uma essencial virtude:o dom da vida como celebração imotitvada. No dia em que nós, brasileiros, tivermos orguho de ser vira-latas, aí sim, e de uma vez por tods, deixaremos para trás o “complexo de vira-latas” e poderemos correr enfim para o beijo e o abraço”.