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Discurso de posse

 Senhor presidente da Academia Brasileira de Letras, Merval Pereira; senhores diretores desta Casa; futuros colegas acadêmicos; queridos familiares aqui presentes – meus irmãos Marcos e Roberto, meu filho Joel, meus netos Tomás e David, minha netinha, Rita, a caminho; meus pais Justo e Yone, in memoriam – como estariam radiantes esta noite, mineirorgulhosos; meus caríssimos amigos e amigas.

     Ao assumir a honrosa condição de membro da ABL, agradeço em primeiro lugar a generosidade dos acadêmicos que me incentivaram e acolheram nesta Casa, aceitando-me como par. À gratidão pelo voto de confiança acresço a alegria de ser recebido por um estimado amigo dos tempos de juventude e contracultura, o filósofo e poeta Antonio Cicero.

     As palavras pertencem metade a quem diz, metade a quem ouve. A fala semeia, a compreensão insemina.

     Creiam-me. Não é coisa fácil estar aqui. Como não sentir a emoção que este ato provoca? O rito solene, os olhares expectantes, a Cadeira que pertenceu a Guimarães Rosa. O sentimento incontornável de que não apenas nós, os viventes, mas também os que se foram e, ainda, os que estão por vir; a sensação de que todos, em suma, os idos, os vivos e os vindouros, estamos de algum modo aqui presentes, na memória e na imaginação, para celebrar os valores que nos unem e libertam do peso da temporalidade. Os valores da arte, do conhecimento e da ética – o absoluto respeito à cultura e às realizações do espírito humano. Como negar?

     A vida é uma corrente contínua. Do alto dos seus 125 anos, recém-completados, a Academia Brasileira de Letras é obra do tempo e das gerações: a parceria e a aliança sempre renovadas entre os que vivem, os que já morreram e os que ainda irão nascer.

     Temos deveres e responsabilidades com os que nos precederam e, não menos, com os que vêm depois de nós. Se a memória é a correia de transmissão do espírito entre o passado e o presente, a imaginação criadora é a ponte capaz de nos conduzir ao futuro – o impulso capaz de tornar nossa herança legado, como “tocha olímpica”, às gerações futuras.

     Elos passageiros e efêmeros, cada um de nós, na cadeia do ser, somos, não obstante, veículos de anseios, talentos e valores que nos transcendem e projetam à eternidade – o belo, o verdadeiro e o bem. Eis a imortalidade que importa.

     Quis o acaso, se existe tal coisa, que entre as quarenta Cadeiras desta Casa coubesse a mim a Cadeira de número 2. Acolhi a sentença dos dados – ou chamado – com um misto de curiosidade e assombro. Curiosidade pelo contato e a oportunidade da descoberta de autores que até então, devo confessar, praticamente ignorava – pouco além do nome. E assombro ao me deparar com a gigantesca, quase opressiva presença, entre os ocupantes da Cadeira, de Guimarães Rosa. “Santa ousadia!”, pensei comigo; ou – por que não? – “santa misteriousança”, na inconfundível dicção do criador de Sagarana.

     Entre os cinco ocupantes da Cadeira a quem tenho a honra de suceder, dois são homens de letras em estado puro: Coelho Neto e Guimarães Rosa; dois são homens de ação: João Neves da Fontoura e Mário Palmério; e o meu antecessor imediato, como eu mesmo, homem de ideias e educador: Tarcísio Padilha. Pela diversidade de perfis dos ocupantes, a Cadeira 2 pode ser vista como um microcosmo da ABL; mas também, é preciso dizer, pela falta de diversidade – nenhuma mulher, nenhum afrodescendente. Corrigir o injustificável viés é um desafio-mor da nossa geração.

 

ÁLVARES DE AZEVEDO

 

     O fundador da Cadeira, Coelho Neto, designou como seu patrono o poeta e dramaturgo paulista Álvares de Azevedo.

     “Autores são atores, livros são teatros”. Sonhador de outras vidas e espectador desta, em Álvares de Azevedo a literatura se confunde com a própria existência. Filho-família da burguesia paulista, o poeta cresceu cercado de recursos, estímulo e cuidados. As condições de vida sempre lhe sorriram. Do convívio doméstico e da vida ao redor só lhe vieram apoio e admiração ao “jovem de grandes esperanças”.

     E, no entanto, a contrapelo das graças e do apreço de todos, Álvares de Azevedo devorou-se numa febre de absoluto e numa interioridade dilacerada que fizeram dele um poeta em profundo desajuste com o mundo e que lhe traçaram o mais romântico dos destinos. Morreu antes de completar os 21 anos de idade.

     Poeta dos estados-de-alma juvenis por excelência, cuja atividade literária não excedeu quatro ou cinco anos, ele tipifica, como observa Antonio Cândido, um caso-limite de “notável possibilidade artística sem a correspondente oportunidade de realização”. Daí que, como prossegue o crítico, “temos de nos identificar ao seu espírito para aceitar o que escreveu; podemos gostar de Castro Alves ou Gonçalves Dias, mas a ele só nos é dado amar ou repelir”.

     A fome de absoluto foi a tônica da sua breve, ardente e atormentada existência. “O sonho é nele tão forte quanto a realidade; os mundos imaginários, tão atuantes como o mundo concreto; e a fantasia se torna [em sua escrita] experiência mais viva que a experiência, podendo causar tanto sofrimento quanto ela”. Sua existência não se deixa medir pelos anos vividos, mas pela potência da busca – pelo ímpeto de viver e adentrar cada dobra do tempo como porta do infinito.

     A teima interrogante da morte à espreita – “Oh! Morte! A que mistério me destinas?” – e a idealização do amor não realizado foram os temas obsessivos de sua obra.

     Em contraste com a primeira geração romântica, capitaneada por Gonçalves Dias, e com a geração que lhe sucedeu, Castro Alves à proa, o ultrarromântico Álvares de Azevedo não cantou a pátria, Deus ou o povo sofrido; não celebrou índios, flechadas e cachoeiras, mas voltou-se para a interioridade de uma alma cindida e um coração arrebatado pelo “mal do século”.

     O poema “Lembrança de morrer” que fecha a Lira dos vinte anos – livro póstumo publicado em 1853 e saudado por um ainda adolescente Machado de Assis como “a boa nova dos poetas” –, dá a medida da sua promessa e potência: “Quando em meu peito rebentar-se a fibra, que o espírito enlaça à dor vivente, não derramem por mim nem uma lágrima em pálpebra demente. [...] Não quero que uma nota de alegria se cale por meu triste passamento. Eu deixo a vida como deixa o tédio do deserto o poente caminheiro. Como as horas de um longo pesadelo que se desfaz ao dobre de um sineiro. [...] Descansem o meu leito solitário, na floresta dos homens esquecida, à sombra de uma cruz, e escrevam nela: – Foi poeta – sonhou – e amou na vida.”

     O verdadeiro poeta, dizia John Milton, deve fazer da sua vida um poema. Álvares de Azevedo fez da poesia a sua vida. A sentença de Beethoven – “somente o buscar aguerrido é infinito” – poderia servir-lhe de epitáfio.

 

COELHO NETO

 

     O que Álvares de Azevedo não publicou em vida, Coelho Neto publicou por muitas vidas. Polígrafo incansável e dono de uma obra ciclópica, sua produção literária alcança mais de 120 títulos e cerca de 8 mil artigos em jornais e periódicos, sem esquecer os 3 mil discursos de improviso, segundo sua própria estimativa. (“Discursos lidos”, usava repetir, “são pássaros de gaiola; o improviso é o pássaro livre, de voo largo, cantando no espaço, ao sol”.)

     Nascido em Caxias, Maranhão, em 1864, filho de um comerciante português e de uma índia amazonense, o mameluco Coelho Neto revelou desde muito cedo a vocação literária: aos 11 anos de idade ensaia traduzir Cícero do latim.

     De sua infância no sertão maranhense ele viria a escrever na maturidade: “Até hoje sofro a influência do primeiro período da minha vida no sertão. Foram as histórias, as lendas, os contos ouvidos em criança, histórias de negros cheias de pavores, lendas de caboclos palpitando encantamentos, contos de homens brancos, a fantasia do sol, o perfume das florestas, o sonho dos civilizados. Nunca mais essa mistura de ideias e de raças deixou de predominar e até hoje se faz sentir no meu ecletismo. A minha fantasia é o resultado da alma dos negros, dos caboclos e dos brancos”.

     A juventude boêmia nos arcos da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo, “sob a impressão ainda dos versos de Álvares de Azevedo”, como ele recorda, fixam a paixão pelas letras e impelem-no ao engajamento na causa republicana e abolicionista. Abandona a faculdade sem concluir o curso e se muda para o Rio de Janeiro, onde se torna jornalista da Gazeta da Tarde, o grande órgão abolicionista liderado por José do Patrocínio, “a flecha lançada em linha reta ao Sol”. Era o marco zero de uma longa e profícua jornada.

     “Discutido, louvado e agredido”, como pontua João Neves da Fontoura em seu discurso de posse nesta Casa, Coelho Neto “se fez o mestre da primeira leva de homens de letras da República”. Autor de enorme prestígio e sucesso em sua época, ele foi eleito por três vezes sucessivas, a partir de 1928, “Príncipe dos Prosadores Brasileiros” em concursos realizados entre os intelectuais e o povo do Rio de Janeiro. É de sua lavra a expressão “Cidade Maravilhosa”, título de um dos seus livros e logo consagrado na marchinha carnavalesca.

     Idólatra da forma, inveterado ressuscitador de palavras condenadas ao ostracismo, dono de um estilo arcaizante repleto de truques retóricos e formalismos, Coelho Neto foi duramente atacado pelas gerações mais novas como um escritor palavroso, estéril, que só se preocupava com a pureza do estilo, a erudição e o vocabulário, negligenciando as questões morais, políticas e sociais.

     Lima Barreto, por exemplo, acusava-o de literato “sem visão da nossa vida, sem simpatia por ela” e chegou a retratá-lo como “o sujeito mais nefasto que tem aparecido em nosso meio intelectual”. De igual modo, os modernistas de 1922 fizeram dele uma espécie de inimigo de plantão e vítima preferencial de uma cruzada antiacademicista que se propunha, em sintomático neologismo, a “descoelhonetizar” a literatura brasileira.

     A virulência da crítica é índice da presença e importância de Coelho Neto na paisagem literária da Primeira República. O tempo decanta o passado. Se é verdade, por um lado, que o beletrismo neoparnasiano do “ateniense do Maranhão” envelheceu mal e que podemos, talvez, dizer dele o que Goethe disse de Victor Hugo – que ele deveria trabalhar mais e escrever menos –, nem por isso devemos incorrer na injustiça de sonegar-lhe seus ponderáveis méritos.

     Para começar, um fato curioso – pequeno, mas revelador. Lima Barreto e Coelho Neto divergiram sobre o futuro do recém-chegado futebol no Brasil. Ao passo que o autor de Policarpo Quaresma via o futebol como um esporte importado, violento e impróprio para a mocidade brasileira – chegou a criar uma Liga Contra o Football –, Coelho Neto celebrou sua chegada e profetizou que entraria em cheio no gosto do brasileiro. Golaço. À luz desse fato singelo cabe a pergunta: quem, então, o passadista? Quem andava em sintonia com a alma do povo?

     Outro exemplo vem da política. Enquanto Coelho Neto, desafiando a censura, corajosamente apoiou o movimento tenentista dos Dezoito do Forte de Copacabana contra a oligarquia carcomida, deflagrado poucos meses apenas após a Semana de 22, os vanguardistas do modernismo se encolheram em cômodo e covarde silêncio, ao abrigo dos salões da plutocracia cafeeira, como se aquilo não lhes dissesse respeito ou à cultura brasileira. E então: quem, afinal, o conservador? Quem o rebelde revolucionário?

     Mas não é só. O ponto mais alto do legado de Coelho Neto foi o seu surpreendente pioneirismo e protagonismo na defesa da ecologia e do patrimônio ambiental brasileiro. Em inumeráveis crônicas, palestras e romances, assim como nos discursos por ocasião do seu breve trânsito pela Câmara dos Deputados, Coelho Neto não se cansou de alertar a opinião pública e de denunciar a criminosa passividade dos governos frente à destruição das florestas, modificando o clima, alterando o ritmo das estações, expelindo os povos nativos e solapando a navegabilidade dos rios e a fertilidade das terras ribeirinhas.

 

     Ecologista vigoroso, Coelho Neto disse verdades que, infelizmente, ardem sob os nossos olhos. Ei-lo na Câmara dos Deputados em 1911: “Enquanto o machado rechina nos troncos e as labaredas fazem crepitar a folhagem, o homem não dá pelo mal, tão ávida é nele a cobiça, que só para o lucro tem olhos. Ai! dele, a floresta vinga-se morrendo: onde cai esplana-se o deserto e os espectros das florestas mortas são a fome, a sede, a enfermidade, os ciclones, as inundações”.

     E, ao comentar trágica inundação em Minas Gerais, prossegue: “Os governos, que acham ridículo esse cuidado com florestas, só dão pelo mal quando um cataclismo os acorda e os clamores das vítimas vão perturbá-los nas confabulações políticas. Então levantam-se alarmados e saem a socorrer aos que por eles bradam. Houvesse eles, como lhes cumpria, garantido a vida das árvores e não teríamos a lamentar as cenas tristes que tanto desolam a terra mineira. As vítimas do fogo vingam-se dos seus algozes – eram elas que faziam a polícia das águas, mataram-nas: o resultado aí está, na revolta dos rios. E não é só a esterilidade que vai malsinando a terra, é também a desordem, e aí a temos, tremenda, em catástrofes, nesse transbordo das águas que vão carreando, na cheia, cidades e vilas, moradias e templos, lavouras e vidas”.

     De lá para cá, é claro, e com redobrada força em anos recentes, a gravidade do quadro só fez aumentar. Em meio século de consistente militância, o maranhense e mameluco Coelho Neto revelou-se um pioneiro da causa ambiental – fato que o singulariza e projeta como escritor muito à frente do seu tempo, não só no Brasil, mas em todo o mundo.

 

JOÃO NEVES DA FONTOURA

 

     Descendente de imigrantes italianos e portugueses radicados em solo gaúcho, João Neves da Fontoura fez da cena política e da diplomacia o palco de sua atribulada e combativa existência.

     “Orador, foi dos maiores, senão o maior do nosso tempo”, avalia Afonso Arinos de Melo Franco. Sua obra escrita, formada por discursos, monografias e depoimentos, com destaque para os dois volumes das Memórias, dignos da nossa melhor memorialística, é documento indispensável para o estudo da história do Brasil no século 20.

     “O mundo nunca pertenceu aos tímidos”, sentenciou João Neves. Como não me é possível tratar aqui da sua vasta atuação como homem público – prefeito, deputado, embaixador e Ministro das Relações Exteriores – atenho-me ao seu ousadíssimo e verdadeiramente crucial papel nos acontecimentos que culminaram na derrubada da República Velha.

     Velhos amigos da Faculdade de Direito em Porto Alegre, Getúlio Vargas e João Neves tornaram-se desde cedo correligionários. As relações entre eles, contudo, nem sempre foram fáceis. O clímax da tensão se deu nos meses que antecedem a Revolução de 1930.

     Getúlio, o eterno hesitante, não se decidia. Adepto do morde e assopra, mestre na arte do “falar, sem nada dizer”, o govenador gaúcho queria manter todas as opções em aberto no processo sucessório, formalizando apoio a Washington Luis e, em paralelo, flertando com a oposição. De tão ladino, ironizava João Neves, o amigo “Geitúlio” era capaz de tirar as meias sem sequer descalçar os sapatos.

 

     Foi quando João Neves, por sua conta e risco, ousou aplicar-lhe um xeque-mate e praticamente decidiu por ele, firmando um pacto secreto entre gaúchos e mineiros, sem o conhecimento de Getúlio, e criando a Aliança Liberal. Nos termos do pacto, a ala rio-grandense do Partido Republicano estava obrigada a aliar-se à mineira, “ficando inteiramente presos os dois estados à candidatura gaúcha, da qual não poderiam se afastar a não ser por mútuo acordo”. O gesto de João Neves atropelava a hesitante dubiedade de Getúlio e selava em definitivo a aliança entre a impetuosidade gaúcha e a astúcia-prudência mineira – era o embrião do movimento que deságua na Revolução de 30.

     E não parou aí. Decepcionado com os rumos autoritários do novo regime, João Neves defendeu com firmeza o pronto retorno à ordem constitucional democrática e surpreendeu a todos ao apoiar a rebelião paulista de 1932 não só em palavras, mas viajando a São Paulo em um pequeno avião de aluguel a fim de lutar ao lado das forças rebeldes.

     A derrota levou-o ao exílio, mas não a renegar o feito. “Ele era por constância e excelência o democrata”, como sintetizou Guimarães Rosa, seu futuro chefe de gabinete no Itamaraty, em discurso de posse nesta Casa: “Creio não ter encontrado outro assim inerentemente autêntico”.

     De volta ao Brasil em 1935, torna-se líder da oposição no Congresso, antes de por fim se recompor com o campo varguista e mais tarde assumir o cargo de chanceler nos governos Dutra e Getúlio. “Quem pensa no Brasil e no povo brasileiro”, ponderou Rosa entre sério e lúdico, “vezes quantas rebeija pedras e santos. Notável esse mirável João Neves”.

 

MÁRIO PALMÉRIO

 

     Mineiro de Monte Carmelo, Mário Palmério foi professor, político, diplomata, romancista e, sobretudo, empreendedor educacional. Como um semeador de escolas e instituições de ensino técnico e superior, sua ação empreendedora transformou o Triângulo Mineiro em importante centro irradiador de ensino e pesquisa.

     A lista das instituições por ele criadas, a começar pelo Liceu do Triângulo Mineiro, fundado em 1940, impressiona e fala por si: Colégio e Escola Técnica de Comércio; Faculdades de Odontologia, Direito, Medicina e Engenharia e, coroando a jornada, o Hospital da Associação de Combate ao Câncer do Brasil Central e o campus da Universidade de Uberaba, criada em 1988.

     Eleito deputado federal pelo PTB de Minas Gerais em 1950, Mário Palmério reelegeu-se por mais dois mandatos, tendo pautado a sua atuação na Câmara pela defesa das causas educacionais, a começar pela questão dos “excedentes dos vestibulares”, como se dizia na época.

     Sua obra literária emana da sua experiência como homem de ação e convívio – da sua capacidade de diálogo e calorosa empatia com todo o espectro da vida brasileira, do capiau ao magistrado.

     Seu romance de estreia, Vila dos Confins, retrata as dores do parto de um recém-criado município no sertão profundo – “mundão largado de não acabar mais” – às vésperas da primeira eleição; a trama do livro, ele conta, “nasceu relatório, cresceu crônica e acabou romance”.

     Em Chapadão do Bugre, sua obra mais conhecida, fruto de ampla pesquisa dos costumes e linguajar do Brasil sertanejo, ele retoma a ambiência do livro de estreia, porém em chave dramática – a saga de uma vingança.

     No final da vida, Mário Palmério passou a viver num enorme barco dotado de biblioteca, escritório e TV a bordo, singrando os rios e zonas ribeirinhas da região amazônica. O plano, inacabado, era escrever um grande épico abarcando tudo o que se sabia sobre a grande floresta e seus desbravadores. A um amigo jornalista que foi visitá-lo no barco, confidenciou: “Eu gosto mesmo é desta vida bandoleira; é de dormir no mato, alisar um cachorro e compor uma guarânia”.

 

TARCÍSIO PADILHA

 

     Filósofo, escritor e educador. Tarcísio Padilha, meu imediato antecessor, dedicou o melhor de suas energias ao ofício da educação. Pensador ligado ao humanismo católico, sua obra como escritor e educador reflete uma inabalável crença “no poder do Espírito de se opor às forças da dissolução e da decadência”.

     Padilha foi o filósofo da esperança por excelência. “Há um abismo entre o que somos e o que almejamos ser”, dizia. Daí a centralidade da ética e da educação em sua contribuição. “O pessimismo”, ele insistia, “cessa tão logo começamos a agir”. “O modo como alguém vive dá verdade às suas ideias e não estas à sua vida”.

     Natural do Rio de Janeiro, Padilha formou-se em Ciências Sociais pela PUC do Rio e fez doutorado em Filosofia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde se tornou professor titular e lecionou por longos anos a disciplina de História da Filosofia. Em décadas de incansável e abnegada dedicação ao magistério, foi docente e orientador de pós-graduação em diversos centros de ensino fluminenses.

 

     Presidiu a Sociedade Brasileira de Filósofos Católicos e o Centro Dom Vital, onde se insere na linha de expoentes do humanismo católico como Alceu de Amoroso Lima e Cândido Mendes. A convite do Vaticano, integrou o Pontifício Conselho para a Família, criado por João Paulo II em 1981.

     Ressalta em Padilha a profunda seriedade existencial com que aborda as questões especulativas e os problemas do nosso tempo. O cerne da sua contribuição contempla dois eixos temáticos em estreita união. Cada um deles, é certo, mereceria todo um discurso à parte, mas, fiquem tranquilos, não o farei. Cinjo-me ao essencial.

     De um lado, está a temática da filosofia pura. A fria razão não comporta o mistério do ser. Padilha se opõe com agudeza aos excessos e pretensões de um racionalismo esterilizante, incapaz de reconhecer os limites da ciência moderna frente ao irreprimível anseio humano de transcendência e de busca de fundamento e significado últimos para a existência pessoal e coletiva.

     “Não como o mundo é, é o místico, é ele ser”, na fórmula lapidar de Wittgenstein; ou, como dirá Padilha, “o mundo é uma ilha de problemas circundada por um oceano de mistérios – o que atrai é o mistério”. Sua adesão, jovem ainda, à doutrina e à fé católicas nascem dessa legítima e primitiva inquietude.

     A segunda vertente da obra de Padilha é o engajamento cívico visando a melhoria das condições de vida e o resgate do nosso secular déficit civilizatório em três domínios prioritários: educação, saúde e justiça.

 

     O ser humano, ele sustenta, não é um dado fixo, “mas constrói a cada instante o seu ser, seja no convívio com outras pessoas, seja em contato com o mundo das coisas”. Daí que, se por um lado, a pessoa humana “se alça acima do Estado, uma vez que seus fins são superiores aos do Estado”, cabe ao Estado, por seu turno, “proporcionar ao homem todas as condições de sua autorrealização pessoal”. E como ele frisaria com justificada insistência em Uma ética do cotidiano, “a prioridade é o ensino fundamental, sem o qual a criança jamais poderá atingir o estágio da cidadania”.

     Para além de suas teses e propostas substantivas, no entanto, a filosofia de Padilha, penso eu, parte de uma intuição fundamental à qual ele sempre se manteve fiel – a crença na esperança não apenas como vivência psicológica, mas como categoria existencial, “tecido do nosso ser, cerne da nossa identidade”.

     Ao ler e debruçar-me sobre sua obra, evoco as palavras do poeta Antero de Quental: “No fundo do coração há uma voz humilde mas que nada faz calar; [uma voz] a protestar, a dizer-lhe que há alguma coisa por que existe e por que vale a pena viver”. Eis a voz que o legado de Padilha inspira e irradia.

 

JOÃO GUIMARÃES ROSA

 

     Álvares de Azevedo; Coelho Neto; João Neves da Fontoura; Mário Palmério; Tarcísio Padilha: as pessoas são todas mistérios; cada uma é todo um mundo a sós. Guimarães Rosa, porém, é mundo à parte. Um universo só seu – sertão místico urdido no exílio da linguagem comum-incomum. Estupenda força, demiúrgica beleza.

 

     Embaraçoso sentimento, a admiração – quando é intensa, quando é demais. Pela dificuldade de expressar-se adequadamente, “coração nos pés, por pisável”, ela se parece com o amor. “Porque o amor não fala e não pode dizer-se todo, senão não seria amor”.

     O que pode ser dito? “Nossas vivências mais próprias não são nada tagarelas”. Mas se “os limites da linguagem denotam os limites do meu mundo”, como bem disse o filósofo, vem o poeta e diz o indizível. Diz o que não se deixa falar: olhar afora, olhar adentro. O ponto exato em que o singular absurdo de cada consciência individual, no que ela tem de mais caprichosamente intratável, singular e incomunicável, rompe o dique, vence o estreito e roça a outra margem. Alcança a visão-lampejo do universal-comum: o que nos une e faz humanos. São raros, estes, em qualquer língua.

     Guimarães Rosa expande as fronteiras do que pode ser dito. Poesia ou prosa? Erudito ou popular? Literário ou coloquial? Culto ou chulo? Sério ou lúdico? Jorro ou artifício? Os opostos não se opõem. Em cada frase, por singela, a surpresa, o inesperado: algo prenhe de meditação e aventura; em cada palavra, como por encantamento, o viço e o vigor; o vir-à-vida das primícias: as células-tronco da nossa língua desveladas e cultivadas por dons de feitiço. Em Rosa, a experimentação criadora faz de quem caminha com ele cocriador do seu mundo. “Sertão é o sozinho; sertão: é dentro da gente”.

     O segredo? O autor de Grande sertão responde: “Apenas sou incorrigivelmente pelo melhorar e aperfeiçoar, sem descanso, em ação repetida, dorida, feroz, sem cessar até o último momento, a todo custo. Faço isso com os meus livros. Neles, não há nem um momento de inércia. Nenhuma preguiça! Tudo é retrabalhado, repensado, calculado, rezado, refervido, recongelado, descongelado, purgado e reengrossado, outra vez filtrado”.

     Trabalho, trabalho, trabalho, ele diz, “precisão micromilimétrica”, a inembotável paciência do artesão. E, no entanto, digo eu, faltou dizer: o relâmpago, o prodígio. A indômita coisinha ilógica. Ou, como ele se permitiu revelar em rara entrevista a Günter Lorenz: “De repente, o diabo me cavalga”.

     A vida não é só o que se vê. O que podemos saber? “Eu me inventei neste gosto de especular ideia”, declara o jagunço metafísico Riobaldo. Grande sertão: a vasta, traiçoeira realidade inabrangível; veredas: as trilhas, cismas e suspeitas do tíbio-mortal saber. O que não é influi e governa o que é. A ignorância infinita desconcerta o saber finito: “a vida não é entendível”. Em Rosa, o impulso criador está a serviço de um propósito definido: o reencantamento do mundo pela presença do mistério. O trêmulo júbilo na alma do leitor.

     “Reporto-me ao transcendente”, alerta o narrador de “O espelho”, magistral contraponto, em chave analítica, ao conto homônimo de Machado: “Tudo, aliás, é a porta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”. “Vivemos, de modo incorrigível, distraídos das coisas mais importantes”. A transcendência se impõe.

     Ou como dirá Riobaldo, descortinador de abismos nas dobras e nervuras do real: “Esta vida está cheia de ocultos caminhos. Se o senhor souber, sabe; não sabendo, não me entenderá”. “Mire e veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou”. Rosa não tem fim.

 

     Escreveu Machado, no ano de fundação desta Casa: “Um dia, quando não houver império britânico nem república norte-americana, haverá Shakespeare; quando não se falar inglês, falar-se-á Shakespeare. Que valerão então todas as discórdias? O mesmo que as dos gregos, que deixaram Homero e os trágicos”. É o que acredito. E vou além: é justamente o que sinto. É precisamente o que eu penso do nosso bardo mineiro, natural de Cordisburgo. Haverá Guimarães Rosa, falar-se-á Guimarães Rosa.

     Misteriousança: ousadia em enfrentar o mistério. Que as sombras e males do presente não nos deprimam ou iludam. Se Guimarães Rosa existe, a grandeza do Brasil não pode andar longe. Estarei só?

 

CODA

 

     Senhoras e senhores, queridos amigos e amigas. É hora – ou passa da hora – de concluir: “a vida não dá demora em nada”.

     A criança é pai e mãe do adulto. Ao assumir esta Cadeira na ABL o meu sentimento revolve como um pêndulo entre a humildade e a ambição. A humildade, de filiação paterna, raiz mineira, é a voz da cautela: não fiz por merecer. Mas ela não vai só. Pois logo se insinua e ressoa em meu peito o contraponto materno. O sentimento ítalo-ardente, audaz: farei por merecer!

     Vem dessa dupla herança – o absoluto respeito à imensa diversidade da pessoa humana de Justo e a emoção estética de Yone, poeta e psicanalista – o ímpeto de seguir em frente. O anseio de ousar e de criar, sempre a recomeçar. Sempre do zero outra vez.

     É difundida a crença de que a idade nos torna conformistas, céticos e resignados diante da realidade como ela é: “na mocidade combatia, na maturidade passou a sorrir com descrença”.

 

     Se é o caso para a maioria, não sei dizer; mas de uma coisa estou certo – seguramente não é o meu caso. Ao contrário. Sinto que os anos acirraram em mim a revolta com as injustiças da vida brasileira e, sobretudo, avivaram a esperança e a fé radical em nosso futuro.

     O Brasil desceu aos infernos. A democracia afrontada; a obscena desigualdade agravada; a floresta violentada. Extraviamo-nos a tal ponto, creem alguns, que talvez tenhamos perdido – e de vez desta vez – o caminho. Quem poderá saber?

     O amor, porém, é ilógico. É Colombo ao ousar o desconhecido. É Aleijadinho, Machado, Pelé. A África em nós. Daí a minha crença inabalável no anacronismo-promessa chamado Brasil. Mais cedo, talvez, do que imaginamos, vamos virar a página e reencontrar, revigorados, o caminho. Às vezes é preciso descer aos infernos para que possa romper a manhã. O Brasil, quero crer, está grávido: no limiar de um parto temporão de cidadania.

     O espírito, como o vento das grandes mudanças, sopra onde quer, quando quer e para onde quer. O que aí está a apodrecer a vida não pode durar porque não é nada; quando muito, é estrume para o futuro. O mal existe no mundo para despertar ação, não desespero; estimular engajamento, não indiferença; suscitar compaixão, não cinismo. Tudo o que já foi é embrião do que vai vir: esperança agreste a brotar do fel do desespero. Desencanto-reencanto, desengano-reengano.

     O Brasil tem sede de futuro. A biodiversidade da nossa terra e a sociodiversidade da nossa gente – afro-euro-ameríndia – são os principais trunfos brasileiros diante de uma civilização em crise. O futuro se redefine sem cessar – ele responde à força e à ousadia do nosso querer. Queiramos! “Onde cresce o perigo cresce também o que salva”.