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Os arremates de Afrânio Peixoto

Texto de autoria do Acadêmico Josué Montello

Sempre me pareceu excessiva, e mesmo descabida, a campanha que denegriu, de modo quase sistemático, o nome e a obra de Afrânio Peixoto, nos últimos nos de sua vida estudiosa.

O livro de Leonídio Ribeiro lhe consagrou, como seu discípulo, como seu amigo, não bastou para alterar-lhe a imagem negativa, que teria tido como pretexto a frase de uma conferência. Aquela em que, na tribuna da Academia, definiu a literatura como o sorriso da sociedade.

Fui testemunha do massacre. E como, ao tempo, ainda moço me faltaria autoridade para entrar na polêmica, esperei que o tempo fluísse, para que ele próprio restabelecesse o bom nome de uma das mais altas figuras da inteligência e da cultura brasileira.

No entanto, não foi isso que se deu.

E como, por preguiça e por ignorância, há ainda quem insista em bater na mesma tecla, sem conhecer a vida e a obra de Afrânio (com quem convivi por largos anos), o resultado é que o saldo da campanha negativa ainda hoje perdura, destoando da imagem verdadeira.

Na fase em que andava em moda, por imposição das duas forças políticas que se contrastavam – a da direita e a da esquerda –, a ponto de existir um Departamento de Imprensa e Propaganda encarregado de louvar a cada dia, a cada instante, o chefe do governo, Afrânio recusou seu voto, na Academia, ao presidente Vargas, candidato à sucessão de Alcântara Machado – precisamente um dos arautos da Revolução Constitucionalista que eclodiu em São Paulo em 1932.

Afrânio não se limitou a recusar o voto – deixou de freqüentar a Academia, por entender que, para a vaga de  Alcântara Machado, não devia ser eleito quem se havia batido contra ele. Limitou-se, daí em diante, a freqüentar a biblioteca e o arquivo da instituição – que sensivelmente enriquecera – e a colaborar na revista da casa, além de visitar diariamente ali o seu velho amigo Fernando Nery, então chefe da Secretaria da Academia.

Teria surgido daí a campanha contra ele? Não posso afirmar. o que sei é que os dois fatos foram concomitantes.

Além do que devo a Afrânio, nos ensinamentos de seus livros, foi ele quem me convidou, em 1941, para escrever o estudo bibliográfico sobre Gonçalves Dias, que a Academia Brasileira publicou logo a seguir.

Credito a Rodolfo Garcia a aproximação do mestre dos Estudos camoneanos, com quem sempre me encontrava pelo meio da tarde, na Biblioteca Nacional, e de quem ouvi, entre muitas outras, esta lição preciosa:

–  Quando você não souber uma coisa, não se informe com sábios e amigos – consulte os livros. Os livros, além de ensinarem sem ruído, não passam adiante a notícia de sua ignorância.

Ao tempo em que fiz a reforma geral dos cursos da Biblioteca Nacional, fui buscá-lo para que assumisse a regência de uma das cadeiras, como seu titular. Já enfermo, respondeu-me com o cartão afetuoso que Leonídio Ribeiro publicou no seu livro. Vejo, por aí, o bem que me queria, e de que sempre me desvaneci, com o mais vivo sentimento de sua grandeza.

Sinto que alguém me bate no ombro para me perguntar:

–  E a que propósito vem agora essa lembrança de Afrânio Peixoto, de que ninguém cogita ou se lembra?

Eu me apresso em responder:

–  É que, há poucos meses, transcorreu o quarto centenário da morte de Montaigne. A única instituição que registrou a data foi a Academia, em dias intervenções: uma de João de Scantimburgo; outra, de quem está falando. Se Afrânio fosse vivo, com a fluência que era do encanto de seu convívio, tanto Scantimburgo quanto eu nos limitaríamos a ouvi-lo, porque foi ele que rastreou exaustivamente a presença do Brasil nos ensaios de Montaigne, com as correlações respectivas.

Quem lê a crítica literária, no período compreendido entre o começo do século e a eclosão do Modernismo, dá com Afrânio Peixoto ocupando três espaços: o do romance, o dos estudos literários e o da ciência médica. E é tão operosa a sua atuação, além mesmo desse período, que o crítico do Jornal do Commercio, Medeiros e Albuquerque, teve a oportunidade deste reparo, com a data de 29 de abril de 1928: “Depois que se inaugurou esta seção, há apenas seis meses, já aqui noticiamos cinco trabalhos de Afrânio Peixoto, entre os quais um grande e belo romance.”

Um crítico da nova geração, e dos mais competentes, Ronald de Carvalho, reconhece: “Depois de Machado de Assis é Afrânio a mais perfeita expressão do romance propriamente humano no Brasil.”

A esfinge, seu  primeiro livro no gênero, tem a singularidade de ser escrito em Heluan, no Egito, de dezembro de 1909 a fevereiro de 1910, e de fixar Petrópolis e o Rio de Janeiro, ainda ao tempo de Machado de Assis, que nele aparece neste flagrante da Livraria Garnier: “Frágil de compleição, minguado de corpo, severamente vestido, falando pouco, hesitante e às vezes gago, reflexo material de grande reserva, ele ali ficava horas inteiras, observando aquela gente a exibir vaidades, a espostejar reputações, miúda e clamorosa. Na ironia tranqüila que andava por seus olhos malignos, não se podia adivinhar se era de piedade dos algozes ou de simpatia pelas vitimas...”

Quem ouviu Afrânio, como conferencista, como professor, como expositor, guardou para sempre a lembrança de sua palavra viva, realmente incomparável. Generoso, amável, prestativo, sabendo tudo, e tendo sempre uma novidade para acrescentar ao que sabia, como ilação ou reparo apropriado, trazia nos olhos o riso espontâneo que parece dispensar o repuxo dos lábios, e é vivacidade e inteligência – como no momento em que a jovem extremamente bela, ao ver passar um adolescente apolíneo, fez a Afrânio esta confidência maliciosa, como a provocar-lhe o galanteio:

 

 

–   Eu, se soubesse que ia ter um filho assim, me entregava.

E Afrânio, dando mais luz às pupilas:

–   E por que não experimenta?

Na Academia, não se limitou, como presidente, a dar-lhe a sede própria e definitiva, no Petit Trianon – foi quem criou as nossas publicações, atraindo a colaboração de Capistrano de Abreu, de Vale Cabral, de Rodolfo Garcia, com alguns dos textos básicos de Anchieta, de Nóbrega, de  Gregório de Matos. No Dicionário da Academia, o ponto de partida é ele.

Nada mais justo, portanto, do que, no salão nobre da Academia, a sua cabeça em bronze, iniciativa de um admirador, Chermont de Brito, e por este oferecida à instituição, que lhe deu, ali, o lugar adequado.

Foi ali que eu o ouvi, assim que cheguei ao Rio. Em São Luís e em Belém, lera-lhe boa parte da obra, inclusive os excelentes estudos que publicara na Revista da Academia.

Assim, quando lhe falei, já éramos amigos. E daí figurar eu na homenagem que um grupo de educadores lhe prestou, e de que ficou memória na fotografia em que Afrânio ocupa o centro do grupo. Foi com emoção que me revi nesse testemunho de que Alberto Venancio Filho se encarregou de me dar uma cópia, para restituir ao dia de hoje as saudades de anteontem.

Sempre que transitei pelos estudos literários de Afrânio – em Poeira da estrada, em Ramo de louro, em Pepitas – guardei comigo lições indeléveis, que outros estudos subseqüentes só fizeram confirmar.

Assim, em Ramo de louro, no texto sobre o exotismo literário, escrito em 1927, e publicado no ano seguinte, é Afrânio quem bem situa o selvagem na literatura, com Os natchez, de Chateaubriand, para logo adiantar, no prolongamento da lição: “Fora precursor dele Montaigne que, no seu capítulo ‘Dos canibais”, refere ter visto índios brasileiros em Ruão, lhes ter falado e, de um companheiro de Villegaignon, ter-lhes aprendido duas canções: é aurora de literatura brasileira. Os selvagens de Montaigne são filósofos e estadistas. Admiram na Europa que homens e velhos provectos fossem comandados por soberanos jovens incapazes e que alguns ricos e fartos dominassem imenso exército de miseráveis, sem protesto sequer; é a crítica à monarquia hereditária, à sociedade capitalista feita por dois tupinambás, cuja só inferioridade, para o humanista, era apenas não terem roupa”.

O tema voltaria a ser tratado por Afrânio em 1931, na História da literatura brasileira, e em Missangas. Em 1932, na Revista de Filologia iria adiantar: “Idéia colateral do exotismo foi a idealização do selvagem, o bom selvagem.”

Em 1936, a convite de Fernand Baldesperger, escreveu Afrânio o capítulo sobre a literatura brasileira, na  Histoire de la littérature universelle que o mestre francês coordenava, para se deter então em outras fontes, além de Montaigne: Ronsard, Rousseau. E é então que conclui: “Eh bien, ce bon sauvage, de Ronsar et de Montaigne, grâce à Villegaignon, et aus fêtes de Rouen en 1550, était brésilien...

Por isso, na Academia Brasileira, na sessão de 13 de janeiro de 1938, ao ser apresentado por Alceu Amoroso Lima, concunhado de Afrânio, o livro de Afonso Arinos de Melo Franco, O selvagem brasileiro e a Revolução Francesa, que esta acabara de publicar, o mestre baiano pediu a palavra para expor os vários passos de sua obra em que o mesmo problema  havia sido tratado. E concluiu assim a sua intervenção, conforme consta na ata dos trabalhos acadêmicos: “Portanto, é com desvanecimento que vejo essa idéia, que me é familiar, prestigiada por livro, com a delonga e o aparato erudito que a ciência e a arte do senhor Melo Franco vêm de lhe dar.”

Assim, os dois mestres brasileiros, cada qual trilhando o seu caminho, terminaram por encontrar-se na mesma conclusão estudiosa. Afrânio, que tivera a primazia, soube ter também a elegância do registro superior, indicativa de que a palavra objetiva, na hora própria, há de preceder o aperto de mão.

Na Academia Brasileira, Afrânio Peixoto não se restringiu a  proporcionar-lhe a sede condigna de que nos orgulhamos e que permitiu, logo depois das festas comemorativas do centenário de nossa independência política fosse instalada a Casa de Machado de Assis no antigo pavilhão francês, cópia do Petit Trianon. E também não se limitou a lhe dar o abrigo condigno e permanente – supervisionou o seu recheio, com as salas, os salões, a biblioteca, o plenário, com o seu bem gosto e o seu cuidado, a que Gustavo Barroso soube dar também a colaboração complementar.

A esta altura, volto a sentir que me batem no ombro:

–   E como explica você o tal sorriso da sociedade?

Tratei de reler o texto, que abre o volume 59 da Revista da Academia Brasileira, relativo a 1940. E posso dizer aqui que, deslocada de seu contexto, a conclusão pareceria um deslize da frase. Mas, no seu contexto, faz sentido. Faz. Afrânio quis dizer que a literatura, no seu requinte como obra de arte, demandaria bem-estar social, assim como o sorriso, em cada um de nós, corresponderia ao bem-estar individual. Daí ter perguntado, logo a seguir, na esteira da ilação: “Como sorrir na tormenta e na preocupação?” Por fim, concluía: “Nas épocas de crise a literatura é pragmática, utilitária: história, ensaios, ciência.”

E por isso, só por isso, aqui fora, nos jornais, nos compêndios, ardeu Tróia, queimando a reputação do grande Afrânio Peixoto.

Mas já é tempo de pormos de lado esse saldo de campanha contra o acadêmico que se recusou a votar no presidente Vargas, por entender que não seria ele o sucessor adequado para Alcântara Machado, que se batera contra o seu governo discricionário em 1932.

Ou então tratemos de dar uma vaia análoga em memória de Henry de Monterlant, por ter escrito, à p. 975 dos seus Essais, na edição da Pleiade, este disparate ainda pior: “La poésie est un grain de beauté sur la joue de l’intelligence.”

Assim mesmo, meus amigos: um simples sinal na bochecha da inteligência... A poesia?

No meu longo Diário, no correr de seus volumes sucessivos, dele guardei as recordações e os reparos momentâneos, para o cuidado de levar adiante as imagens que ele nos proporcionava, e é com emoção que sempre o evoco, reconhecendo que Afrânio soube ser o confrade inexcedível, no seu gosto de conviver, de servir e de admirar.

Vale recordar aqui, para completar-lhe o perfil acadêmico, a astúcia com que  Afrânio Peixoto se houve por ocasião da escolha de dom Silvério Gomes Pimenta, arcebispo de Mariana, para suceder a Alcindo Guanabara. Pouco antes do pleito, já praticamente assegurada a eleição de dom  Silvério, obra de sua lembrança e de seus empenhos, dirigiu-se Afrânio a Carlos de Laet, para sugerir-lhe que designasse, logo após o pleito, o professor Aloísio de Castro, católico praticante, para receber o novo acadêmico. Mas Laet, na presidência havia dois anos, e prepotente, repeliu prontamente a sugestão:

–  A designação é prerrogativa minha. E já escolhi, para receber o novo acadêmico, o nosso confrade Luís Guimarães.

E Afrânio, sereno:

–  Tenho o desprazer de afirmar-lhe que não vai ser ele.

–  Veremos – replicou Laet, irritado.

Assim que dom Silvério foi eleito, Afrânio pediu a palavra, para assinalar a significação especial da escolha, e terminou sugerindo que, para receber tão alta figura do clero, só um católico praticante,e do mais alto valor. E concluiu:

–  Como nosso presidente não pode indicar a si próprio, convido a Academia a aclamar, para receber dom Silvério, o doutor Carlos de Laet.

Palmas do plenário, com a vitória de Afrânio.

O que não impediu que Laet, a despeito de militância católica, cedesse à dicacidade da língua, fingindo-se de distraído, ao insistir em chamar dom Silvério, que era escuro, de dom Glicério – como se o confundisse com o senador Francisco Glicério, que era preto.