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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Pedro Calmon

Senhor Rodrigo Octavio Filho,

Compreensível é a vossa emoção nesta iluminada noite de gala acadêmica.

Realizastes um sonho antigo, subindo, sem pressa, os degraus da vida, até esta consagração harmoniosa, que costuma ser, no nosso, e nos países que do mesmo modo seguiram os estilos da França de Richelieu, o mais elevado prêmio da inteligência desinteressada.

Mas a vossa festa não pode ser de alegria feliz, porque o crepe destacado da Poltrona que conquistastes, e ireis prestigiar com os vossos grandes méritos, é a lembrança palpitante do pai querido, a quem sucedeis, e continuais.

Tem, pois, o timbre inicial do paradoxo, a vossa aplaudida investidura na Cadeira 35.

Estais jubiloso e triste; ao amado antecessor fizestes a invocação da praxe, e o elogio da ternura mais aflita e saudosa; entremeastes o louvor do ritual ao agradecimento íntimo, à serena amargura da alma ferida; e tecendo a teia de ouro da literatura à volta do vosso tema, não quisestes esconder, antes o mostrastes na sua sinceridade leal o coração de filho. Ele, sim, o homônimo e patrono, vosso predecessor e mestre, não caberia de contente, se vivo fosse, ante o esplendor do vosso êxito; e receberia como suprema consolação, do destino que tão impiedoso lhe fora nos últimos tempos, a glória de projetar-se para além da existência, no suave orgulho de ser substituído pelo filho, portador de seu nome, parceiro de sua atividade, discípulo predileto, companheiro que nunca lhe faltou, seu confidente, e seu amigo.

Pela primeira vez – notastes bem – sucede o filho ao pai numa cadeira acadêmica, com o dever regimental de louvar-lhe a memória.

Este torna-se escusado, que o melhor elogio do criador é a criatura, na educação, na influência, no ideal, reproduzindo-se, na geração seguinte, a que soube guiá-la, e sobreviver.

Devidamente no-lo ensinou o Eclesiastes: Mortuus est pater eius, et quasi non est mortuus: similem enim reliquit sibi post se.

Habituaram-se, desde muito, as sociedades que preservam os seus pergaminhos de continuidade histórica, às linhagens desdobradas nos sacrifícios e na importância dos postos eminentes. Chamou-lhes Rui (a ressalvar o direito de Rodolfo Dantas à autoridade que se lhe conferira), “as dinastias do patriotismo e do talento, as únicas que as revoluções não hão de destruir”. Falava dos Pitts, dos Cannings, e dos Peels, dos Gladstones, cujos apelidos estamparam, nos pórticos do parlamento, as insígnias tutelares. Entre as asperezas da representação política e a fama intelectual, pura e generosa, tivemos os Nabuco, os Rebouças, os Machado de Oliveira, os Celsos, os Araújo Viana, os Luís Guimarães, os Osórios, os Lima e Silva... O ilustre nome paterno trazem até nós, e o redoiraram de nobre evidência, Aloysio de Castro, Afonso de Taunay. Com perto de cinqüenta anos, percebe-se que a Academia, fundada pelos pais, seja, como isto, apetecida dos filhos, e por eles honrada.

O vosso caso, porém, é singular, nem foi antes repetido; pois vos tocou, e dela tomais posse, a Cadeira vaga de Rodrigo Octavio!

Ganhastes em herança aberta o alto galardão pelo consenso dos que vos elegeram e, desenganadamente, por uma clara vocação familiar, irredutível e tranqüila, que foi o itinerário e o sentido da vossa formação.

De fato, a cumplicidade das circunstâncias assim o quis. Tínheis de ser acadêmico por nascimento, inclinação, obediência e fidelidade.

Há uma lei de herança que transcende as normas jurídicas: o direito sucessório do espírito.

A casa de Rodrigo Octavio foi o lar venturoso de um homem de bem: igualmente um ateneu, um salão, a torre de marfim, onde, como, ao entardecer, as asas do céu, se refugiavam poetas... Freqüentei-a nos dez anos finais daquela abençoada existência. Sob a copa redonda de suas árvores, o solar da Rua das Palmeiras respirava a paz dos conventos: ultimamente, nos arrastados meses da moléstia sem cura, a severidade dos santuários... Na gratidão filial resplandece de azulejos frescos, de verdura tenra, de muros de neve, “a casa de meus pais, austera, monacal...”

Ela possui uma alma enternecida e quieta,
Pois lá mora meu Pai e meu Pai é Poeta...
Nela a alegria é sã, tudo me anima e encanta
Pois é nela que vive a minha Mãe, que é Santa...

Havia ali a vastidão de uma livraria, as vigílias dum trabalho interminável, as efusões duma hospitalidade tradicional, misturados os sobressaltos dum civismo exigente com as imagens do passado, “memórias dos outros”, que não podia morrer... Agarrava-se a ele – no martírio da invalidez – o jurisconsulto, o historiador, o internacionalista, o lírico, professor, até o derradeiro instante, no magistério do conselho, da recordação, da justiça e da verdade.

Essencialmente escritor, fizera das belas-letras a batalha da juventude e a exaltação da vida pública.

Dera à Academia antes da fundação, no convívio amável dos gênios da época, e depois de 1896, nos seus tempos difíceis porque vazios e pobres, o alento criador de seu entusiasmo...

Nos argumentos de Próspero, insistiu Rodó na etimologia do vocábulo. Os gregos sabiam o que diziam. En theos, inspirado, ou condutor, dos deuses. O que os leva consigo – Cristóforo pagão; ou se deixa arrebatar por eles, na acepção de mensageiro das forças eternas, e seu instrumento... Bendito – nesse respeitável significado – o entusiasmo!

Não o regateou aquele mestre de iniciativas beneméritas, na sua mocidade estudiosa, na plenitude de sua carreira afortunada, na velhice fosforescente de lições inesquecíveis. Ouviu-as, enquanto pôde falar-lhe, a Academia, por quem tinha extremos de pai precavido; e o filho, criado nessa atmosfera de convicções literárias.

Cresceram juntos, pode-se dizer, a douta instituição e o rapaz deslumbrado pelas labaredas alegóricas em que ardia esse cauteloso grêmio de celebridades.

Conhecestes a Academia daquela fase inorgânica, sem tetos próprios, agasalhada em sedes provisórias, indigente e soberba como o espanhol do Cancioneiro, com a cidade a seus pés, moradia de favor e cerimônias pomposas – quando quis – em salas emprestadas... A secretaria ficou no escritório de Rodrigo Octavio: cartório, arquivo, burocracia acadêmica; não raro, o plenário das eleições. Afonso Arinos e Euclides ali foram eleitos.

A sua inaudita capacidade de trabalhar pelos outros atribuiu-lhe essa magistratura excessiva: foi, algum tempo toda a Academia.

Coincidiu com a vossa infância e adolescência.

Contastes-nos que estendíeis olhos espantados àquilo: os fabulosos amigos da casa! Constelava-se o grupo com as reputações mais notáveis do Rio de 1900. Através da vidraça duma janela – que era como as nevoas da fantasia – vós os admirastes... A austeridade de Machado, a elegância de Joaquim Nabuco, a irreverência de Medeiros, a melancolia de Lúcio de Mendonça, presentes a tradição, a crítica, a poesia e o Estado, com Loreto, Veríssimo, Sílvio, Filinto, Rio Branco, a trindade parnasiana de Bilac, Raimundo e Alberto. Por vezes irrompia nessa confraria augusta um enorme chapéu de mosqueteiro: o tio Raul Pederneiras... Assististes, anos a fio, a solidariedade diuturna, de Rodrigo Octavio, secretário infatigável, com a Academia que era o seu pensamento, a sua obsessão, a sua ufania. Acompanhastes os seus passos – seu aluno da Faculdade de Direito e seu interlocutor dos largos diálogos sobre o destino e a angústia da inteligência. Reproduzistes – com as diferenças impostas pelas desigualdades de meio e época – a sua aventura estética: por metade homem prático, com a banca de advogado abarrotada de trabalho útil, e poeta lírico: cigarra e formiga...

Devíeis fazer bonitos versos, e os fizestes, na roda em que pontificava a figura oracular de Mário Pederneiras.

No vosso livro, Velhos Amigos, traçastes o perfil desse mavioso Mário Pederneiras, cuja fascinação foi decisiva para as vossas primeiras audácias literárias – quando entre 1910 e 15 – a redação da Fon-Fon era menos uma anti-Academia do que o prolongamento desta... Lá se chegava pelo errado caminho de Ariel:

Não maldigo, entretanto, o Destino Culpado
Que, ingênuo, me ensinou este Caminho Errado.

Ronald, Felipe d’Oliveira, Álvaro Moreyra, Rodrigo O Moço tinham a honra de associar-se ao banquete imaterial do “cantor da cidade”: e conferiram com ele o seu tormento interior.

Era no tempo – advertistes – em que os poetas preferiam Mallarmé e Verlaine ao pôr-do-sol da Guanabara; e estremeciam de ânsia renovadora, arremetendo, com vigor diferente, no seu torneio de estilo e ritmo.

Ingrato período – é indiscutível – esse em que sobraçastes o alaúde dos trovadores noivos do luar... Amanheciam as formas inesperadas; esgotara-se o Simbolismo num delírio de cores; e os últimos gregos soluçavam o protesto parnasiano entre os pilares da Acrópole... Era na hora cinzenta dos conflitos hesitantes que definistes num límpido resumo: “O eterno choque entre velhos e moços, as lutas permanentes de escolas antigas e novas; a natural incompreensão das manifestações literárias ou artísticas, oriundas de sentimentos nascidos em épocas diferentes...” Adivinhava-se “a poesia livre de peias e de medidas, como que construída de volumes de imaginação e feita de palavras que se arrumam como brinquedos de armar...” Auscultava-se o temporal próximo: vinha na vertigem da rebelião desencadeada: com o sopro dos ventos do oriente...

Passava-se, porém, por sob as sombras, a ramagem perfumada duma “alameda noturna”... Tal o titulo de vosso livro de estréia, em 1922, que colige as esparsas flores dum jardim secreto. Sente-se, pela demora dele, seis anos depois de morto Mário Pederneiras, que no ânimo do autor brigaram longamente a coragem e o pudor de sua arte...

Nem todo sonho neste mundo é vão...

Tu verás, minha amiga silenciosa,
Nos largos passos que nós vamos dar,
Que, se às vezes a estrada é dolorosa,
Outras vezes iremos a cantar...
Um dia, enfim, quando chegar o Outono...

O que de pessoal, incomunicável e delicado tem esse repertório de estrofes macias, revela o poeta que não ousou romper com os modelos da “velha guarda”, enleado e plácido nessa beatitude... Sonho e saudade, aspiração indistinta, o mar enigmático e volúvel, povoada de fantasmas amigos a sua noite, a sugestão do amor, “na bruma pálida” voz “distante, a ecoar...” são as confissões, a que não faltou o tênue colorido da tristeza.

Sou o triste cantor de olhos sombrios,
– Poeta – Caminheiro, amando o luar...
Tenho a alma feita de torrões esguios,
Com misteriosos sinos a cantar...

Artificial, certamente, nostalgia de preceito, ou convenção, que era tributo pago à escola da moda, tinha a graça duma dúvida.

Poucos bacharéis recém-chegados poderiam dizer-se mais ditosos do que Rodrigo Octavio Filho na idade do namoro em rimas sonoras – “triste Pierrot” das Colombinas inevitáveis...

Tanto que lhe ficou para trás a poesia, logo no segundo livro – deliciosos estudos tirados do “fundo da gaveta” em que se alternam páginas de viagem, paisagens verídicas; impressões de leitura, doutrina social e beleza fluida, mudou mesmo de predileção, trocando de musa: a dos versos musicais pela glacial senhora que preside ao julgamento do passado, Clio, a da terrível memória...

E sempre eu vos seguindo a alameda sombria,
Com os olhos cheios de ânsia, a olhar lá para o fim,
Sentindo dentro d’alma a abafada harmonia
Da música da sombra a cantar dentro de mim...

Voltastes para o caminho percorrido. Já não mais o nosso, porém, o caminho do País: nos sólidos reexames do que acontecera, a rever o processo da Constituinte de 1823 o Panorama Político da Guerra dos Farrapos, o Ato Adicional, as biografias de Prudente e Ubaldino do Amaral, essa conspícua galeria de Figuras do Império e da República, vosso Volume de ontem. É um gentil desfile de grandezas. Inaugura-o a gente trovejante da primeira Câmara da Nação. Estrondeia a cavalgata dos centauros. Medita o entrevado Vasconcelos a reorganização política da Monarquia. Os estadistas da aurora republicana fitam-nos de sobrolhos irritados nas suas molduras presidenciais. E a pompa de Barbacena, os negócios de Mauá, a rajada de Tuiuti, os vaticínios de Tavares Bastos alternam-se na coleção plutarquiana de vosso livro de vidas irrepreensíveis. Capta-se nele o eco cerimonioso dos saraus de outrora. Transporta o barulho fecundo da colméia esquecida, com a fúria sagrada dos avós. Tem a bravura primorosa das reabilitações!

O memorialista sobreleva ao historiador em Velhos Amigos, e se descobre a si mesmo – “coração aberto” as mais caras lembranças do tempo vivido – nesse começo de série, que é a evocação dos que tanto deixaram nele o vestígio de seu afeto.

Vale dizer que, entre o soneto e a biografia, desde a Alameda Noturna até esse recanto de museu cheio de “figuras do Império e da República”, descrevestes a habitual trajetória dos artistas, que, principiando pela fuga nos espaços ideais, se detêm finalmente, e demoram nas fontes da sabedoria perene, onde sussurram as águas de antanho, e se encontram os poetas, inspirados pela restauração dos símbolos.

Razão tinha Wilde: o poeta é espectador de todos os tempos e de toda a existência. Não há para ele formas antiquadas nem temas que passaram da moda. Corrigiu-o Anatole France: contanto que o livro de História, para não ser insípido, seja falso... Queria dizer: que seja belo. Nesse profeta em retrospectiva – como lhe chamava Schlegel – deve pulsar o amor da Beleza, capaz do milagre da ressurreição dos mortos – que é, afinal, a maravilha da História autêntica.

A Vida Amorosa de Liszt serve de exemplo a essa tendência.

Nunca se estudou no nosso meio o caráter distante e complexo do músico genial, com a finura interpretativa desse retrato em guache romântico, que descortina outra qualidade do ensaísta. Numa síntese larga das peregrinações daquele mago do piano-forte, pode haver mais compreensão que num maciço, Pesquisado tomo de história séria: o problema é, no caso, de introspecção artística.

Lá rezava Boileau: Rien ne vaut que le vrai. Mas o completou Shaftesbury: All beauty is true...

É a estética, pois, o denominador comum de vossas idéias.

Nos poemetos da “juvenília”, alumiados pela lâmpada elegante do vago amor, que foi, na vigília da vossa geração, a “lanterna verde” de todas as inquietações: nos robustos estudos do Brasil velho; nos capítulos de comovida recordação e nos livros históricos, cumpristes uma inalterável missão estética.

Participais da malsinada categoria dos homens que emprestam às coisas um pouco do seu otimismo íntimo: e receiam desenganar-se delas como Goethe (e Machado de Assis) com a sua “libélula azul”.

Gostaríeis de ensombrá-las com a tinta lúgubre da desesperança; podereis obscurecê-las com o desencanto fatalista; ou explorar o gosto, senão o desgosto, de uma classe de leitores, dando à realidade os exageros dolorosos que a corrompem, mas a dramatizam.

Não fosseis quem sois, nem viésseis donde viestes!

Desde os primeiros anos, a educação moral, que vos ministrou o pai-artista, assim vos amoldou a alma, impregnando-a desse alento de romantismo prático – é o termo – que constitui a segunda natureza dos temperamentos sensíveis.

As letras, aliás, prestam-se a tudo.

Ai de nós, se a honesta profissão da escrita nos induzisse a assumir atitudes obrigatórias – determinadas pela pragmática sentimental – em face da vida e de suas surpresas! Seguimos, cada qual, o nosso destino: somos marinheiros cativos de uma estrela, que nos conduz na noite espessa da viagem; navegantes da intuição, e, de ordinário, barqueiro ao léu... Na partilha dos dons, nunca preferimos os que agradariam a todos. Daí, nos esquemas da literatura, as escolas; na classificação espiritual, os tipos humanos.

Rodrigo Octavio e seu filho foram promotores de animação, criadores de energia, arquitetos de laborioso edifício, paladinos nas linhas dianteiras da ação social, modelos de bom convívio, beneditinos da agremiação inteligente.

Tais qualidades incomuns e estimáveis exigem o pressuposto da simpatia que conjuga e atrai, une e comanda. Já não são muitos os que dela se valem como uma fórmula de aliança intelectual: porém, convenhamos, foi uma prova de suas possibilidades a criação das academias!

Por que existem? E que utilidade têm? Há trezentos anos as injuriam, em todos os tons da sátira, os que não entendem a conveniência de se encontrarem, uma vez por semana, num determinado lugar, homens de letras, a estas devotados. Mas, desde os áureos tempos de Luis XIV, vivem, florescem, e atuam, urbe et orbe, caladas ou ruidosas, mansas ou combativas, eloqüentes ou lacônicas, trêfegas ou aristocráticas, francas ou fechadas, as academias literárias, sem que, em nenhuma parte do mundo onde disto haja, se declarassem prescritas – ou proscritas, pelas exarcebações da “idéia nova”.

A razão dessa longevidade é simples – e bastante: nem no mecenato do poder, nem no regaço dos favores oficiais, nem na proteção privada, das classes ricas, nem nas universidades, ou nos trajetos da glória mundana, acharam jamais os letrados o ambiente adequado para o exercício da mais difícil das artes, seja, a penosa arte de envelhecerem juntos congraçando as suas opiniões – na divergência geral dos debates – sem partidos, que dividem, sem intransigências, que confundem, sem superioridades, que constrangem, sem intolerâncias, que repelem, nem a mágoa e a angústia de ser só. A mesa redonda engendrou um conceito cavalheiresco de igualdade: a camaradagem da nobreza. As academias inventaram melhor: a eloqüência, sem ênfase das conversas sapientes. Pode ser a fascinação dos ambiciosos, o prêmio do merecimento, o repouso das jornadas extensas pelos cimos da publicidade, essa espécie de Senado das letras, regelado, às vezes, pela friagem do desengano, tão perto fica das instituições vitalícias, o inverno da vida, Sibéria intelectual... Não importa! Vejamos a nossa. Até a fundarem os turbulentos protagonistas do Fogo-Fátuo, de Coelho Neto, deambulavam pelas redações, agrupavam-se nos regabofes do Clube Rabelais, chacoteavam na Pascoal, esparziam a boêmia pelos bastidores dos teatros, lastimavam-se em vozes indignadas, não houvesse na cidade um sítio onde, dignamente sentados, pudesse discordar dos companheiros. Dessa necessidade brotou a Academia Brasileira, como um vínculo cordial de civilização e de paz. Não se deixaram empolgar por ela apenas os mais moços, como Graça Aranha, os mais viajados, como Nabuco, os mais reacionários, como Laet, os mais descontentes como Romero, os mais alegres como Medeiros, os mais sociáveis, como Artur Azevedo, Valentim Magalhães ou Rodrigo Octavio, sendo os mais sisudos, como Rui Barbosa, os mais distantes Taunay e Azeredo; os mais tempestuosos, como Patrocínio, os mais calmos, como Silva Ramos, os mais críticos, como Veríssimo, os mais ausentes, como esse impassível Machado que a presidiu e consagrou. É como se disséssemos que a aceitaram as mais contraditórias correntes, como uma solução pretensiosa – à falta de outra mais própria – para o problema da sua convivência.

Decerto não se contentavam com a regalada palestra em redor duma abstração: convencionaram servir à língua e à cultura nacional. A estes dois pontos de seu programa se conservou fiel a Academia Brasileira no meio século em que sobreexistiu à indiferença ou à hostilidade, dos que detestam essas categorias de cooperação espiritual – ou a ignoram.

De um equívoco, evidentemente, devem forrar-se as academias. É o academismo.

Tornou-se a caricatura por vera efigie. Tem disso culpa, nas origens, a Academia Francesa. Foi a sua política. A sua “grande política”. Transposto o turbilhão das lutas religiosas, concentrado o poder nacional, debruçada a França, do balcão do Reno, sobre a paisagem do mundo, quis cristalizar o idioma e o espírito, dando-lhes uma dignidade clássica. Era o conceito hierático da cultura, a sua codificação, o verniz canônico, algo de perfeição absurda, em repúdio da vida impetuosa – e a sua sublime negação. Essa atitude antibarroca (digamos com Alfredo Weber), essa mania de purismo lingüístico, a atormentada pesquisa da beleza imóvel justificaram o epigrama do academismo.

O que dele disseram os críticos joviais!

De sua maledicência sorriu um agudo filósofo, que dava por bem preenchida a atividade acadêmica se completasse o Dicionário e lhe ajuntasse a gramática da língua: aquele, porém, aberto, como uma feira d’aldeia, à colaboração do povo, palpitando e vivendo com a alma das ruas, a sua sabedoria e a sua realidade. Quem o modernista que retificou, com grave advertência, os roteiros da Academia? Chamou-se Fénelon, e isto expunha na Memória sur les occupations de l’Academie Française, no último ano do reinado de Luís XIV!

No Brasil, pelo menos, nunca entendemos a responsabilidade acadêmica como um formalismo oposto aos fatores rústicos e poderosos do meio que nos envolve, da terra que nos influencia, do espírito coletivo, da geração que passa. Traduzimos americanamente o título, a condição, o programa e a índole da instituição ligada, desde a primeira hora, às contingências nacionais. Ninguém pensou nunca em erigi-la em baluarte; porque foi sempre casa representativa. Não a fortaleza, mas a assembléia. Menos o agressivo reduto do que o centro de convergência. Onde se visitaram, e se reúnem, todas as tendências da literatura contemplativa ou militante. Todos os gêneros, todas as escolas, todas as direções. Os que se presumem clássicos, os que aspiram aos atrevimentos da novidade mais avançada, os sossegados artistas que não se matricularam em nenhuma dessas ordens literárias, poetas, prosadores; homens de ciência, que, do amor às letras, e de seu longo trato, deduziram uma vez a oportunidade de bater às portas deste palácio onde se hospedam a estética sem política e o sereno estudo. Academia sem academismo foi a sua norma heterodoxa, no cuidado extremoso pelo idioma, na sobressaltada vigilância da Cultura e de seus direitos, no zelo constante das tradições literárias do País, e nas tarefas silenciosas em que se revezam os operários, herdando, uns aos outros, a obrigação modesta, como acontecia, à sombra das torres góticas, nas catedrais de traço secular...

Aparelhamos as pedras anônimas, que se vão levantando em muros sobranceiros e floridos: é, há quase cinqüenta anos, o labor diuturno que nesta Casa se realiza, aberta aos sentimentos da Pátria e em comunicação com as suas impaciências juvenis. Feita para servir, constituída para sobrepor-se à confusão das querelas, definida como uma idéia de conciliação e de construtivo trabalho no tumulto das vozes de guerra, o seu convite ao bom senso do país é uma palavra enérgica de fé.

Confiamos na eficácia das Academias, porque reconhecemos a utilidade do congregado esforço dos que sonham, os préstimos de sua aliança e as promessas de sua fraternidade. Cremos nelas pelo ideal que as anima, pela honrada solicitude que as enobrece, pela desambição amável que as valoriza. Nelas acreditamos por seu endereço para lá dos problemas do dia, pelo longínquo horizonte a que se dirigem, e pelo contingente imaterial dos interesses que as sobrecarregam. Devotem-se, como pretenderam os seus fundadores, ao fulgor, clareza e universalidade da língua em que os gênios da raça imortalizaram as suas mensagens sem data. Dediquem-se ao bom combate da integridade espiritual da Nação. Dêem-se à salvaguarda de seu patrimônio popular no resguardo ciumento de suas lendas e narrativas; apliquem-se à meditação desses primores da sua velha sensibilidade; à análise e à difusão de suas ocultas riquezas; e à identificação exata de seus segredos e de seus mistérios. Empenhem-se na busca, na indagação, na garimpagem e na escolha dos velhos motivos da arte popular que o tempo ilustrou; façam do inventário dos cabedais do idioma o seu entesouramento avaro; cumpram as recomendações dos seus filósofos e dos seus retóricos; ativem as suas possibilidades de ação e influência; desfraldem, nos topos desse castelo encantado, a bandeira – e o desafio – da luta pelos imortais valores do espírito. Sejam a tribuna da liberdade intelectual, os arquivos da vernaculidade, a biblioteca da cultura evolutiva, o decoroso recinto da erudição posta a serviço das questões permanentes do País como pensamento, altura, inspiração e objeto da arte literária.

Para esses trabalhos sóbrios vos alistastes, Sr. Rodrigo Octavio Filho, e vindes em hora difícil.

Trazeis no coração a flama da poesia; e prometeis continuar a interrompida faina paterna...

Queria Piron – aquele cético magnífico – que as orações acadêmicas em solenidades como esta, se reduzissem a bem pouco. Diria o recipiendário: Messieurs, grand merci. E o paraninfo: Il n’y a pas de quoi.

Serei mais justo – realmente informativo – tomando-vos pela mão à entrada, mostrando-vos com gesto amigo o lugar, e lembrando-vos que a casa é vossa. Reparai nela: está por toda parte o forte vestígio que aqui deixou Rodrigo Otavio. Duma dessas paredes pende o seu retrato. Ao filho e à Academia quis com amor equivalente. É natural que nesse enlevo de família e de saudade encontreis um pouco do passado. Nele estremecem as ilusões perdidas, as sombras amadas, que se escoam no tempo, flores das primaveras que não voltarão, a doce melancolia da “alameda noturna”...

Unindo esse romance antigo ao futuro triunfante que vos sorri, tendes o que fugazmente entreveis hoje: tendes a glória.