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Múcio Leão

                        CONTRIÇÃO

Eu não te mereci. Eras bela e eras pura.

Havia na tua alma um secreto esplendor,

Misto de suavidade, emoção e ternura.

E essa luz era o amor!

 

Um dia, meigamente, amada peregrina,

Vieste pousar, sorrindo, o teu olhar no meu.

E havia no teu ser uma graça divina,

Um encanto imortal, que logo me prendeu.

 

Eu pude acreditar, quando chegaste, linda,

Para mim descerrando a mais clara manhã,

Que em tua luz feliz, que em tua luz infinda

Se me abria Canaã.

 

Perdoa, se eu, que sou imperfeito, um momento

Ousei volver o olhar à tua perfeição,

Implorando um sorriso ao teu recolhimento,

Implorando um carinho à tua solidão.

                                                                                    (Poesias, 1949.)

 

                              ELEGIA

Um dia, amor, tudo o que existe agora,

Tudo o que forma o nosso grande orgulho,

A pureza e o esplendor de nossas almas,

Terá morrido, sem deixar lembrança,

Na velha terra indiferente aos homens.

 

Nada do que hoje nos parece eterno

Terá ficado do naufrágio imenso.

 

Esquecidas de nós, as novas almas

Levantarão para as estrelas mudas

O milagre feliz dos novos sonhos,

Sem talvez meditar que a terra outrora

Vira prodígios e deslumbramentos

Semelhantes aos seus, sob um céu puro.

 

Uma névoa de pó terá coberto

As cidades vaidosas, onde os homens

Hoje, lutando, desvairados, sofrem.

E apenas raros monumentos tristes

Lembrarão, no candor da branca pedra,

A fronte sacratíssima de um sábio,

De um herói, de um guerreiro, de um poeta,

Que a glória cinja com a divina palma.

 

Novos deuses, em templos majestosos,

Receberão, no plácido silêncio,

O murmúrio das preces comovidas,

O perfumado fumo das oblatas

E o amor das multidões...

Ah! nesse tempo

Eu terei recebido dos destinos

O bem do esquecimento imperturbável...

Deste homem que hoje sou - das minhas crenças,

Dos meus sonhos de amor, dos meus desejos,

Das minhas ambições mais rutilantes -

Nada mais restará, nada, na terra!

 

Mas, quem sabe? Talvez, um dia, um homem,

Amigo das pesquisas minuciosas,

Visite longamente as bibliotecas,

Onde durmam os livros seculares,

Que as traças lentas vão destruindo a custo.

E esse homem, cheio de um amor antigo,

Curioso do viver das eras mortas,

Talvez encontre, entre outros livros velhos,

Estes versos que escrevo, e em que minha alma

Fala à tua alma em longas confidências.

 

E então, meu lindo amor, como evadidos

De um sepulcro, nós dois ressurgiremos

Aos olhos caridosos desse amigo,

Vindos das densas sombras do passado.

 

Talvez...

Seremos belos!

Nossa fronte,

Há de doirá-la a mesma juventude,

Que hoje nos cerca de um clarão sagrado!

Haverá nos teus lábios esse mesmo

Beijo vibrante que me trazes hoje!

E nos olhos terás o mesmo encanto

Que neles me seduz e prende agora!

 

Sim: no milagre desse instante ardente,

Nessa ressurreição maravilhosa,

Nós brilharemos juntos, aureolados

De um novo amor e de um carinho novo!

 

E então esse paciente amigo nosso

Volverá para nós, nos dias de hoje,

Toda a sua saudade religiosa,

E invejará, talvez, piedosamente,

Essa breve, ligeira hora de sonho,

Que hoje os destinos deixam que vivamos...

                                                                                    (Poesias, 1949.)

 

                           AS LUAS

Sobre a população desta amarga cidade

Pairam, longínquas, as sombras de duas grandes lusas.

 

Elas velam o sono de Deus.

Uma está posta sobre os olhos de Deus,

E é por seu intermédio que os divinos olhos

Penetram os pensamentos e as dores

Do coração aflitíssimo dos homens.

 

A outra lua está colocada sobre o cérebro de Deus;

- E é a música, e é o sonho, e é o maravilhamento

De novas artes puras e perfeitas,

Que os homens jamais hão de conhecer.

                                                                                       (Poesias, 1949.)

 

                 OS PAÍSES INEXISTENTES

- Queres partir comigo para países muito distantes,

Para países que dormem,

Embalados por oceanos que ninguém conhece?

 

Oh! Vamos juntos! Vamos partir para esses meus mundos misteriosos!

Levar-te-ei a planícies brancas, cobertas de neve como as do Alaska.

Verás que há na altura um sol gelado, envolto na poeira nívea da neve.

E verás que um vento - um vento que uiva nos montes alvos -

Vem beijar teus cabelos cheirosos.

 

Levar-te-ei a montanhas encantadas, onde habitam dragões de olhos de fogo.

Verás que no céu as estrelas se desfazem,

Mandando raios doirados coroarem tua fronte serena.

Levar-te-ei às ilhas paradisíacas,

Que estão dormindo no ritmo das ondas mansas.

Lá as árvores cheias de sombras são feitas de humanas ternuras

E os pássaros que cantam têm uma voz límpida como violinos.

 

Levar-te-ei a esses mundos estranhos,

A esses mundos formosos que nunca ninguém viu.

 

E tu hás de repousar a cabeça no meu peito,

Deslumbrada pelos meus países inexistentes.

                                                                                       (Poesias, 1949.)

 

           A POESIA QUE DESCE AO POETA

Poeta, ser estranho, ser enigmático entre os seres!

Vejo-o, isolado das cores, das formas e das ideias,

Isolado, nessa crepuscular solidão que o acompanha.

 

E é então que vejo descer sobre ele

Uma como sombra de celestiais eflúvios:

- A Poesia, a Poesia de inesperadas ressonâncias,

A grande Poesia, que é uma exalação indefinível,

Que é um som infinito, vindo de outras esferas,

Que é a comunicação miraculosa de outros seres e de outras regiões.

                                                                                       (Poesias, 1949.)

 

                    EXPIAÇÃO

Muitas vezes, a sós, na desventura,

Volvo a mim mesmo um longo olhar austero,

Um olhar que interroga... e considero

Os abismos de fogo da amargura.

 

Que deus poderá ser o deus severo,

Que fez cair sobre a minha alma impura

A noite do abandono e da tortura,

Em que desvairo e em que me desespero?

 

Que pecados trouxe eu das outras vidas?

De que faltas antigas cumpro agora

As penas tristes e descomedidas?

 

Que alma infeliz dentro em minha alma implora?

Em que velhas estrelas escondidas

Fui réu de crimes sem lembrança, outrora?

                                                                                          (Poesias, 1949.)

 

                REENCARNAÇÃO

Quando, no eterno, fúnebre quadrante,

Meu momento final soar, cair;

Quando tu vieres, lacrimosa amante,

Todo de roxos lírios me cobrir;

 

Nesse supremo, nesse infindo instante,

A que constelações irei subir?

Em que estrela fantástica e radiante

Irei de novo ser e amar e rir?...

 

Que formas outras, nessas outras vidas,

Florindo sob estranhos firmamentos,

Irá o meu espírito sofrer?

 

Cansado das angústias doloridas

Da existência de agora - que tormentos

Irei de novo em outros mundos ter?

                                                                                    (Poesias, 1949.)

 

                        REDENÇÃO

Quando eu morrer, a minha íntima essência

Não se há de desfazer, como um clarão:

Há de ficar - beleza, amor, consciência -

Resistindo à final dissolução.

 

Nessa alta e metafísica existência,

Hei de sentir, na eterna solidão,

Os milagres da vasta efervescência

De um cosmos novo em nova floração.

 

Sei que a minha alma há de ficar no espaço,

Nos encantos do amor em que vibrei,

Nos estos longos de um divino abraço,

 

Na glória enganadora a que aspirei,

Na amargura dos versos que hoje faço,

Nos sonhos vãos em que me dispersei.

                                                                               (Poesias, 1949.)

 

UM PRECURSOR DO MODERNISMO

 

É nessa fase que João Ribeiro se torna o crítico do Modernismo, ou um dos três ou quatro críticos do Modernismo, pois, na imprensa carioca e na de São Paulo, há outros ensaístas ou jornalistas da especialidade que vão registrando, também, as atividades dos novos: há Tristão de Ataíde e Ronald de Carvalho, há Rodrigo Melo Franco de Andrade e Cândido Mota Filho.

João Ribeiro tem uma atividade longa nesse terreno de sua crítica, e tão longa que, unicamente com os artigos dessa corrente, nos foi possível organizar um dos volumes mais ricos e interessantes de sua crítica.

Pelo volume intitulado Os modernos é fácil perceber como, tendo chegado ao Rio em 1914, tangido pela conflagração daquela Europa onde sonhara ir acabar os dias, João Ribeiro trazia o espírito ansioso por todas as renovações. Liberto de preconceitos acadêmicos ou clássicos, possuindo uma cultura que abrangia todos os aspectos universais, cansado do ramerrão em que se estiolava a poesia em nosso país, João Ribeiro, que havia visto o mundo, que se educara em Berlim, em Viena, em Milão, em Roma e em Paris, mostra já nos artigos daquela época (no Imparcial) que existiam novos caminhos a serem tentados pelos poetas e pelos prosadores brasileiros. Quem acompanhar a sua atuação de crítico a partir de 1917, vai vendo e sentindo isso a cada passo. Como um exemplo decisivo transcrevo de um seu estudo acerca de Gilka Machado, publicado naquela folha em 16 de maio daquele ano, a seguinte passagem:

“A poesia nova é livre no metro e na expressão, o seu ritmo tem o desalinho da prosa, variado e profundo; e também possui o seu vocabulário e os seus temas prediletos.

Os parnasianos, técnicos, inflexíveis, não acompanharam essa evolução; intimamente detestam, acreditamos, essa poesia nova.

Ora, é grave dizê-lo: os parnasianos não têm razão alguma. A poesia é sempre a mesma, mas tem as suas modas.

E em tais casos, a evidência é um pouco arriscada.

Os Srs. Alberto e Bilac fazem-se a si grande mal em teimar pela publicidade de inspiração inteiramente demodée, fora de tempo, com a sua técnica sempre rígida e perfeita, mas tendo a menos o frescor juvenil e a oportunidade agora extinta.

Os dois grandes poetas, já merecidamente consagrados, podiam conformar-se às contingências da nossa história literária, que se faz sempre seguindo correntes externas, como acabamos de ver, sem que as gerações influam umas sobre as outras.

Da mesma sorte que foram parnasianos de origem francesa contra os últimos românticos de sua terra, agora têm que ceder a outras correntes estranhas, renunciando a qualquer influxo sobre os homens novos.

A poesia parnasiana entre nós já se tornou fatigante em retardatários imitadores provincianos, que aprenderam as excelências técnicas dos seus mestres, igualaram quase a sua perfeição, e, por assim dizer, banalizaram, até ao fastio, a sua estética.”

É duro e quase cruel esse trecho, sobretudo quando consideramos que estão vivos, e que é a eles que João Ribeiro se dirige, dois nomes tutelares do nosso Parnasianismo, Olavo Bilac e Alberto de Oliveira.

Quando, quatro ou cinco anos depois, Graça Aranha tomou aquela rude e enérgica atitude de intimar a Academia a renovar-se, uma das palavras de apoio que encontrou foi a de João Ribeiro. Um apoio discreto, é verdade, o apoio de um cético risonho, que, mesmo quando queria muito a uma ideia, ousava descrer do absoluto de sua eficiência...

Depois, o movimento modernista se foi desenvolvendo, se foi espraiando, se foi afirmando, cada dia mais. E João Ribeiro foi, com carinho, com calor, muita vez com um verdadeiro entusiasmo (tão raro em uma natureza tão displicente) acompanhando a sua evolução.

 

JULGAMENTOS SOBRE OS MODERNOS

Tomando parte, de certa maneira à sua maneira, no movimento modernista, João Ribeiro se vai divertindo com todas as coisas, e da forma que lhe é possível. Adere ao grupo dos antropófagos, e só lastima a precariedade dos seus dentes, que já lhe não permitem as manducações abundantes e deliciosas do tempo da juventude.

No volume dos Modernos, a que já me referi acima, pode-se ver a finura, a precisão, com que compreendeu o papel de Graça Aranha, o de Ronald de Carvalho, o de Manuel Bandeira, o de Mário de Andrade, o de Oswald de Andrade, o de Menotti del Picchia, o de Ribeiro Couto, o de Cassiano Ricardo, o de Jorge de Lima, o de Tristão de Ataíde, o de tantos, tantos outros, que foram modernistas do primeiro momento. E também se vê como foi sentindo o que valiam os mais moços, os que iam chegando depois - os romancistas como José Lins do Rego e Amando Fontes, os poetas, com Eugênio Gomes e Vinícius de Morais. E sempre com aquela sua sutileza irônica, sabendo separar em cada um deles, ou em quase todos, a parte do que era mérito real da parte do que era amplo e resplandecente cabotinismo...

A tolerância ou a compreensão que ostenta para com os modernos encontra hostilidade e irritação por parte dos velhos, ou apenas dos tradicionalistas, chocados com as irreverências do grupo que deseja a transformação e a reformação das nossas letras. E isso um dia leva João Ribeiro a uma explicação quase estou a dizer, a uma declaração de princípios.

Escreve então:

         “Quando recenseio as obras literárias que me cabe registrar na imprensa, tenho a mais simpática admiração pelos homens novos, que se recusam a repetir o já dito e redito pela gente que passou ou vai passando.

         Nisto parece que difiro de alguns passadistas intransigentes.

         Acho que é coisa possível com a estreita gama de sons inventar melodias e dissensões novas. E não só é possível, mas é desejável. A lira de quatro cordas não pode ser um limite à amplitude infinita das suas cantigas.

         Muito menos a prosa, que possui os seus ritmos ainda mais largos.” (1)

 

UMA OPINIÃO DE CASSIANO RICARDO

Os que lerem aquele livro - Os modernos - hão de ter observado que João Ribeiro teve, para a exata compreensão do movimento modernista do Brasil, uma significação da maior importância. Escrito por um crítico desapaixonado e nada faccioso, um crítico que pairava acima de partidos literários quaisquer que eles fossem, as análises que encerra, muitas delas, pelo menos, podem ser tomadas como os retratos definitivos dos poetas e dos prosadores de que trata.

É afinal na posição em que os viu João Ribeiro, que também os vemos nós, que hão de vê-los as gerações futuras.

Creio que o que já ficou aí escrito é mais do que suficiente para mostrar qual o lugar preciso de João Ribeiro como crítico do movimento que se convencionou chamar no Brasil, em falta de um batismo mais exato, de Modernismo.

Esse papel, que ele exerceu com prazer e convicção, já tem sido posto em destaque por vozes de muita autoridade, como, por exemplo, a de Cassiano Ricardo.

Diz o autor de O homem cordial:

         “O verdadeiro precursor do Modernismo de 22 foi João Ribeiro. Quero dizer que Graça Aranha (e isto para me referir a outro nome desta Academia) terá sido, em 1924, um grande agitador de ideias, na memorável conferência aqui pronunciada tumultuosamente :

         ‘Ou a Academia se renova, ou morra a Academia.”

Mas João Ribeiro, já em 1917 (portanto sete anos antes) havia tomado a sua posição de vanguarda. Com a diferença de que, por ser muito anterior a Graça Aranha, a sua atitude representou um ato de insubmissão mais insólito, porque ainda sem proselitismo e talvez mais profundo, porque fundado em sua autoridade de crítico, no seu valor e na sua cultura.” (2)

E tão certo está o poeta de Montanha russa desse grande papel exercido por aquele que foi dos seus antecessores na cadeira que hoje ocupa na Academia, que, ao ver que se aprumava o ano de 1952, em que se iria comemorar a passagem do trigésimo aniversário da Semana da Arte Moderna, propôs à instituição celebrasse de maneira eloquente o acontecimento. E um dos números que encontrou para tornar mais eloquente a celebração, consistiu exatamente na publicação daquele volume intitulado Os modernos. A Academia aceitou a sugestão. E o volume indicado foi organizado e oferecido ao público. Assim puderam ter os leitores brasileiros aquele nítido e às vezes tão gracioso espelho, em que João Ribeiro contempla a renovação literária que se foi operando no Brasil a partir da década de 1920.

Sugiro, pois, a quebra de um dos preconceitos mais aferrados em nossa história literária.

Diz esse preconceito que os grandes críticos brasileiros do século passado são três: Sílvio Romero, José Veríssimo e Araripe Júnior.

Proponho que se incorpore de uma vez a esses três nomes o de João Ribeiro. Façamos uma tetralogia, em vez de uma trilogia. Não é meu intuito aqui, e isso seria uma tolice, pretender medir valores espirituais.

A única coisa que pretendo acentuar é que, pela universalidade de sua cultura, pelo esplendor de seu espírito, pela honestidade e a sinceridade de suas opiniões, João Ribeiro não pode deixar de ser colocado no mais alto cimo de nossa crítica literária, como um verdadeiro e definitivo marco.

         (1) O Estado de São Paulo, 20-7-1927.

         (2) Conferência de Cassiano Ricardo na Academia Brasileira de Letras.

                                                                           (João Ribeiro, 1954.)