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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Afonso Celso

RESPOSTA DO SR. AFONSO CELSO

COMO, ÀS VEZES, JULGAM E SE JULGAM ACADÊMICOS

SENHOR Lauro Müller:

Há pouco mais de 156 anos, – precisamente em 9 de abril de 1761, – Jean le Rond, que, para as ciências e as letras, adotara o nome de d’Alembert, membro da Academia Francesa, da qual, mais tarde, foi secretário perpétuo, escreveu a seu colega Voltaire, a propósito de uma recepção dupla, no já então egrégio instituto:

“Recebemos hoje o Bispo de Limoges que não sabe ler e Batteux que não sabe escrever. Em compensação, possuímos um diretor que sabe ler e escrever, ou, pelo menos, disso se ufana.”

Chamava-se Coetlosquet o bispo de Limoges que, segundo d’Alembert, não sabia ler. Não era, realmente, uma sumidade literária; mas, prelado erudito e venerando, chegou a lecionar o Duque de Berry, depois Luís XVI.

Quanto a Batteux, – o que não sabia escrever, – gramático e poeta, publicara vários trabalhos, atestadores de fino engenho, servido por judicioso estilo.
A carta em questão prova que, desde há muito, as escolhas acadêmicas suscitam rigorosas e injustas críticas, até, ou principalmente, no seio das academias eleitorais.

Do próprio d’Alembert rosnavam os mais benévolos que não passava de bom geômetra entre literatos e de bom literato entre geômetras.
Nada disto impediu que a Academia Francesa tenha sido o que tem sido e é: o alto modelo de associações congêneres, mesmo na severidade e na malícia de certos conceitos.
Mas a citação de d’Alembert não veio para que se registrasse tão comezinha, embora consoladora, conclusão. Veio no intuito de assinalar-se uma afinidade entre a Academia Francesa e a Brasileira. É a seguinte: tem esta última um sócio de quem, como do bispo de Limoges, se pode asseverar que não sabe ler.

Claro está que não se trata de analfabetismo, ausência completa de letras.
Hesitaria em assacar tamanho aleive a consciência do mais acirrado inimigo da Academia, ou a do mais ardente, prematuro e inconfesso candidato a um lugar no seu grêmio acolhedor.
Na Academia Brasileira há atualmente alguém que não sabe ler, talvez em condições idênticas às de Monsenhor Coetlosquet, pastor episcopal de Limoges.

É um caso de alexia, privação ou perturbação acidental da faculdade de ler, conservando-se as sensações vitais. A vítima desta afecção, também denominada mais pedantescamente amnésia visual verbal, vê caracteres gráficos e desconhece-os; embaraça-se, titubeia, ao decifrá-los, sobretudo, como agora, ante grande e preclaro auditório.

Sucede isto comigo; e, se relato a insignificante particularidade, é, – acredita-me, – não para, imitando respeitáveis exemplos, fornecer dados autobiográficos de um imortal, porém, sim, impetrar-vos desculpa de não ler literalmente, conforme a praxe, o meu discurso.

Escrevi-o com o possível carinho. Inibe-me a insuficiência apontada de repeti-lo tal qual o redigi. Costuma assim, aliás, acontecer na vida; ninguém diz exatamente o que escreve; ninguém escreve inalterado o que diz.

RIO BRANCO

A solenidade de hoje bastaria a preenchê-la o valor do recipiendário. Realça-a e ilumina-a a evocação de Rio Branco, cuja pena, semelhante se não preferível à espada do guerreiro, benemérita se tornou de inspirar versos análogos aos de Magalhães, celebrando Napoleão:

Esse herói que com a ponta de seu gládio
No mapa das nações traçava as raias.

Estatuário de colossos, na frase de outro poeta, Rio Branco conseguiu dar ao nosso país definitivos contornos materiais, desbastando-os no imenso bloco sul-americano.
A sua história notabiliza-se, quando menos, por um fato extraordinário, que muito bem acentuastes, Sr. Lauro Müller.

Como nenhum brasileiro, como raras individualidades humanas, ele encantou e cativou a donna mobile por excelência, – a popularidade. Ninguém no Brasil, nem José Bonifácio, o patriarca, nem Feijó, nem Caxias, nem Osório, nem D. Pedro II, nem os próceres do abolicionismo e da Republica, ninguém angariou tamanha, tão constante, tão duradoura estima popular, que jamais variou para com ele, como muita vez variava a heroína da canção, sendo, pois, loucura o nela ou o nelas fiar-se alguém.
Com fundamento, aferia a opinião pública a política de Rio Branco pela figura de Rio Branco. Contemplava-a alta, forte, imponente, varonilmente bela, a distinguir-se pelo aspecto de serenidade, o divino estado ataráxico dos antigos gregos, tão excepcional em nossa raça.

Se como poucos serviu à sua Pátria e à sua gente, como a poucos, a mui poucos, a sua Pátria e a sua gente o cumularam de condignos galardões, aclamando-lhe reiterada e indiscrepantemente as exímias qualidades de estadista e de diplomata. Honra lhe seja e honra nos seja!
Em verdade, tais qualidades ele as possuía em grau eminente. Encarecia-as o dom decisivo e misterioso, que também apontastes, Sr. Lauro Müller, e que, não raro, pode suprir todos os mais: o de ser amado dos deuses, o de ser feliz. Na vida pública, Rio Branco mostrou-se ininterruptamente feliz, valoroso general sem reveses, nem provações.
E o merecia, acrescenta a consciência nacional.

BRINDE EXPRESSIVO E COMOVENTE
 
O seu sucessor no Governo foi também o seu sucessor na Academia. Sem surpresa, antes com simpatia e confiança, acolheu-se a substituição aqui e ali. Disputada correu na Academia a eleição, pois o vosso contendor, Sr. Lauro Müller, era um insigne brasileiro, Ramiz Galvão, merecedor tanto quanto vós da vitória, e que deploramos todos ver ausente do nosso cenáculo.

Acresceu ao vosso triunfo a circunstância de que proveio de renhido pleito, ferido com máximo desassombro e lealdade, o que não exclui a paixão. Oxalá se pautassem pelas nossas todas as eleições do Brasil!

Conheci-vos (talvez nem mais vos lembreis da ocorrência que a mim se me gravou na memória por motivo especial que adiante referirei), conheci-vos num banquete oferecido a um professor católico belga, de visita a esta Capital. Haviam promovido a festa correligionários dele, e convidaram-vos por uma razão que recordarei, arriscando indispor-vos com alguns de vossos amigos políticos. É que tendes a fortuna de também professar a fé cristã. Aprovais, sem dúvida, que eu o proclame, porquanto (e é um dos salutares influxos dessa religião) sabeis, quando mister, afrontar o respeito humano.
Tínheis deixado, naquela época, havia meses, o Ministério da Viação. Persistiam, entretanto, em cercar-vos atenções gerais, em vez do vazio, de ordinário aberto em torno dos ex-dispensadores de mercês e posições.

Após numerosos brindes (o bródio, embora dedicado a um estrangeiro, era genuinamente nacional), dirigiste-vos a mim, que apenas minutos antes vos fora apresentado, e dissestes, mais ou menos, no estilo lapidar de Rio Branco, a quem, ainda nisto, continuastes:

“Ergo a minha taça, em homenagem a um brasileiro do qual até o meio-dia de 14 de novembro de 1889 fui adversário e cujas virtudes comecei a admirar depois daquela hora, reputando-o hoje, conquanto permaneçamos em campos opostos, um dos nossos exemplares concidadãos: ao Visconde de Ouro Preto!”

Indizível a minha comoção ante o cavalheiresco gesto, igual a muitos que vos nobilitam o procedimento cívico e particular! Acredito que vos alegro, revelando que o Visconde de Ouro Preto, cuja elevação mental e moral, bem como a cujo patriotismo a Nação, afinal, rendeu justiça, acredito que vos satisfaço, repetindo que o meu saudosíssimo Pai, com quem, mais tarde, tratastes de perto, quando ele advogou, perante os tribunais, o direito do Estado de Santa Catarina, sobremaneira vos estimava e vos augurava alevantados destinos.

Deriva, de algum modo, esse amistoso apreço do seguinte fato: vários atos por ele concebidos e iniciados encontraram realização no primeiro governo federal de que fostes parte salientíssima.

O MINISTÉRIO OURO PRETO E A PRESIDÊNCIA RODRIGUES ALVES

Durou apenas 160 dias o ministério Ouro Preto, de 7 de junho a 15 de novembro de 1889, e, em tão curto período, agitado de graves preocupações, trabalhou ativa, intensa e fecundamente, qual, antes dele, somente havia trabalhado a administração de D. João VI, em chegando ao Brasil, e depois dele, não sei de alguma que trabalhasse mais.

Recordarei, para comprovar o asserto, os seus atos mais memoráveis. Não é matéria alheia à Academia, que hoje recebe um estadista, e de História se deve ocupar.

Nos Negócios Interiores, então chamados Negócios do Império, celebrou com Portugal o gabinete Ouro Preto uma convenção, garantindo direitos autorais; promoveu a criação do cardinalato brasileiro; elaborou projeto de reforma administrativa provincial e municipal que, conferindo autonomia às províncias, assegurava a legítima intervenção do poder central para impedir a formação de oligarquias e reprimir abusos; tratou de convenções sanitárias com a Argentina e o Uruguai; cuidou de habitações operárias; concedeu a Ferreira de Araújo a abertura de uma larga avenida nesta Capital.
Na pasta da Justiça, encaminhou seriamente a redação da lei de falências e do Código Criminal, bem como a realização do projeto de Código Civil.

Na da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, concebeu estradas de ferro, como a de São Paulo ao Rio Grande do Sul; estudou empreendimentos grandiosos, qual a união, por linha férrea, entre Recife e Valparaíso; ocupou-se da navegação de rios, engenhos centrais, exploração de minas, diques, canais, docas, burgos agrícolas, decretou arrasamento de morros, o abastecimento de água e as obras do Porto do Rio de Janeiro.

No tocante às repartições militares, chamou a dirigi-las generais de terra e mar, iniciando a prática desde ali até agora sempre seguida; obteve a colaboração constante e eficaz de Floriano Peixoto, a quem deu as maiores provas de apreço e confiança, distinguindo-o, no decurso de cinco meses, com três elevadas nomeações: a de marechal-de-campo, e de dignitário da Ordem da Rosa, o que o inclui entre os grandes do Império, e a de ajudante-general do exército, acrescentando que o mais tarde Marechal de Ferro, amigo e correligionário do Visconde de Ouro Preto, até a hora em que vós, Sr. Lauro Müller, principiastes a admirá-lo, anuíra ao convite de substituir o ministro da Guerra, Visconde de Maracaju, prestes a, por enfermo, exonerar-se.

Relativamente às finanças, ilustrou-se por múltiplos feitos que levaram o comércio a querer ofertar um palácio e levantar uma estátua ao ministro da Fazenda, coisas por ele rejeitadas. Assim: a conversão da dívida externa; o contrato para completo recolhimento, dentro de breve prazo, do papel-moeda; a circulação metálica; os auxílios à lavoura, combalida pela abolição; a fundação da clearing-house; o plano de remodelação bancária; o da instituição do crédito agrícola.

Quando às Relações Exteriores, estreitou a amizade do Brasil com o Chile, resolveu a co-participação da nossa Pátria na primeira Conferência Pan-Americana, a reunir-se em Washington, nomeando para delegados brasileiros os nossos finados confrades Lafayette Rodrigues Pereira e Salvador de Mendonça, o segundo dos quais, em sua obra A situação internacional do Brasil, pôs em relevo a esclarecida decisão e patriótico empenho com que o Visconde de Ouro Preto procurou, sem deslize da altivez nacional, aproximar-nos da Grande República do Norte.

Ainda na órbita internacional, terminou o antiqüíssimo litígio com a Argentina, mediante o tratado de 7 de setembro de 1889, que, submetendo a questão ao arbitramento norte-americano, nos proporcionou o triunfo esplêndido de Missões, degrau inicial da glória de Rio Branco.

Ante um movimento militar, caiu o ministério Ouro Preto, cujo desassombro, energia e prontidão em cumprir o seu programa, reconheceu o Sr. Campos Sales, no livro Da Propaganda à Presidência. Por um movimento militar igualmente viu-se assaltado o governo Rodrigues Alves, governo a que pertencíeis, e célebre ficou a digna repulsa deste presidente à insinuação de deixar o palácio ameaçado: “É aqui o meu lugar!”

Em conjuntura análoga, mais dramática, encontrou-se o Visconde de Ouro Preto, procedendo com inexcedível hombridade.

O 15 DE NOVEMBRO

Ao ser aqui recebido um dos nossos mais encantadores confrades, definiu assim o 15 de Novembro: uma ameaça em surdina e uma capitulação apressada. Encerra esta apreciação um equívoco histórico e uma injustiça tanto aos vencidos como aos vencedores.

No conceito de alguns, o 15 de Novembro correspondeu de tal modo aos sentimentos do povo, derribando instituições sem raízes e gastas, que nenhuma resistência se lhe poderia contrapor.
A Monarquia, no dizer desses, tombou a um simples gesto da soberania popular, pois, incompatibilizada com o progresso do país e com a homogeneidade da América, de todo lhe faltavam convencimentos e dedicações.

Mas se, realmente, o 15 de Novembro representa apenas a conseqüência fatal de premissas, há muito estabelecidas, o efeito irrepressível de fatores acumulados, o ponto de chegada necessário de longo caminho percorrido; se tudo aí se desenrolou lógica, natural, legitimamente, sem violação de direitos, nem risco de pessoas; se a propaganda republicana se limitou a recolher, naquela data, o maduro fruto da semente lançada em terra fértil e que fácil brotara, crescera, florira; oh! neste caso, bem exíguo mérito compete a fortuitos triunfadores de jornada inócua, os quais arrombaram uma porta aberta, deitaram por terra um morto, empunharam armas para trivial passeio, e não para grave combate, afrontaram uma sombra, arremeteram contra um nada, cabendo-lhes, portanto, a condenação corneilliana dos sucessos inglórios, por imperigosos.

Não! Por honra da República e do Brasil, os acontecimentos revestiram mui diversa feição.
Eis como procederam os depositários da autoridade, contra a qual se insurgira a força pública:
O idoso e enfermo soberano estava longe, em segurança; mas ao saber da sublevação, não trepidou um instante, acorreu imediatamente para o centro da possível luta, no coração da cidade alarmada, onde, intemerato, agiu, na esfera das suas funções, até ser preso e desterrado.
Um dos ministros, velho almirante, faz tudo ao seu alcance, ativo, energético, decidido – para aparelhar a defesa.

Ia reunir-se a seus companheiros, no posto de maior responsabilidade e perigo, quando enfrenta com o exército adverso, formado em batalha, pronto a investir.
Sai-lhe ao encontro, a cavalo, o prestigioso comandante desse exército, acompanhado de numeroso séquito, todo montado também. Intimam o velho almirante a render-se. Achava-se este ao pé, sozinho. Não recua, não vacila, não profere uma palavra. Mal ouve a intimação, saca de uma arma de fogo, aponta-a contra o general contrário. Dispara-a. Ao tiro, que falhou, responde uma descarga da escolta. Cai, vertendo intrépido sangue, o digno marinheiro.

Vede agora o presidente do ministério imperial, aquele contra quem convergiam as iras dos revoltados. Avisado do levante dos batalhões, parte, sem detença, alta noite, para o campo provável do combate. Toma diretamente, com extraordinária diligência, capacidade e vigor, medidas idôneas ao desagravo; acumula no quartel-general do exército, como se fora experiente profissional, elementos eficazes de vitória; formula, em pessoa, rigorosas ordens para inflexível repulsa.

Assestada a artilharia da revolução contra as frágeis paredes do edifício, reiteradas vezes ordena o Visconde de Ouro Preto que se rompa o fogo, que se ataque, que se lute; e, como não lhe obedecessem, concita os brios, evoca as passadas glórias aos militares que ainda lhe pareciam fiéis, buscando, assim, demovê-los da inação ante as forças que os arrostavam.

Declarando-lhe, em conselho de guerra que convocou, os generais presentes que seria total a ineficiência da reação; reconhecendo-se abandonado, rodeado de gente infensa, não se abate o Visconde de Ouro Preto. Repele a proposta de retirar-se pelos fundos do prédio, para alhures organizar a resistência; pede exoneração a quem de direito, ao seu soberano; aguarda as determinações deste; cumpre até o fim com dignidade, com soberania, com sobranceria, com heroísmo, o seu melindrosíssimo, o seu cruciante dever.

FORÇA MORAL NO INFORTÚNIO

Um minuto trágico: Nenhuma esperança mais para os ministros da Monarquia... Entre frementes aclamações, penetra o marechal Deodoro no Quartel-General, até então fechado. Submetem-se a ele os oficiais e as tropas aí formadas, e, porventura, ainda indecisas. Desamparado, no meio de um grupo manifestamente hostil, fica o ministério deposto, à mercê do vencedor.

E o vencedor aí vem, acompanhado de denso e tumultuoso cortejo, excitado pelos toques, rufos, salvas, brados triunfais. Sobe, adianta-se, ao tinido de esporas e espadas, pelos longos salões sucessivos; irrompe, em tropel, no local onde, inermes, sujeitos às invectivas e agressões comuns em tais lances, permaneciam os seis membros do governo decaído, em face à revolução, ante o embate da formidável torrente, com seus excessos, com o seu horror.

Veemente, dirige-se Deodoro, apoiado pela turba minaz, ao Visconde de Ouro Preto. Ereto, firme, impávido, arrogante quase, conforme as testemunhas, retorque o Visconde às exprobrações, num ambiente de sacrifício, vendo armas em riste contra seu peito, sentindo nos olhares e gestos os que o enclausuravam num círculo de suplício, cóleras fervendo, refreado a custo o ímpeto de desfechar a ofensa, o ferimento, a morte.

Tal a nobreza dessa atitude que o futuro generalíssimo, conhecedor, como um bravo, da genuína bravura, estendeu, afinal, a mão ao Visconde, e, comentando depois a cena épica exclamou: “O Ouro Preto procedeu como eu, no lugar dele, houvera procedido!”
Nada disso merece a qualificação de ameaça em surdina e capitulação apressada.

A CARREIRA DO SR. LAURO MÜLLER

A estes peremptórios sucessos prestastes, Sr. Lauro Müller, concurso diligente e relevante. Exercíeis, em 1889, como alferes-aluno, o comando de uma companhia, na Escola Militar, onde ocupava o cargo de bibliotecário o nessa quadra capitão do Estado-Maior de Artilharia Hermes Rodrigues da Fonseca.
Antes da matrícula na Escola, havíeis trabalhado, modesto empregado, no comércio, – fato que somente vos abona. Ao invés do antigamente entendido, tanto mais nobreza possui hoje o homem ilustre quanto mais humilde a sua procedência. Glória aos soldados rasos que conquistam o generalato, glória aos caixeiros que se erigem à supremacia de patrões, ou à influencia de patronos!

Na Escola, adquiristes nomeada. Reconheciam-vos os méritos tanto os mestres como esses juízes, mais severos e mais seguros: os condiscípulos. Gozáveis, entre todos, não já de simpatia e de acatamento, porém, de autoridade, predicado especial, gerador de confiança e indicador de predestinação para os cimos.

Na imprensa e na tribuna escolares, que assíduo freqüentáveis colhíeis constantes aplausos, excedendo a dos melhores a vossa calma operosidade.
Nutríeis ardente culto de dois ideais que inflamavam a mocidade da época: a Abolição e a República.
Em São Paulo, Lúcio de Mendonça, Silva Jardim, Júlio de Castilhos; no Recife, Martins Júnior; no Rio de Janeiro, José do Patrocínio e Ferreira de Meneses, para citar apenas alguns mortos, propugnavam idênticas doutrinas. Na campanha abolicionista, denodado atuou o vosso esforço. Fundastes, dirigistes associações liberadoras, promovestes a redenção de numerosos escravizados. Ao vosso nome assiste o direito de figurar com os de Joaquim Nabuco, André Rebouças, José Mariano, aureolado por um raio de sol de 13 de maio.

Sabe-se que na Escola, e mesmo depois, como Euclides da Cunha, vosso contemporâneo, compúnheis versos.

Consegui saborear uma única produção da vossa musa. É um soneto intitulado – “Sempre” –, assim metrificado:

Nem mais longe ficaste, nem mais perto
Por eu ficar aqui mais demorado,
Pois entre mim e ti creio e é certo
Que ser distante é ser aconchegado...

Foi-se o vapor embora; no azulado
Só resta o fumo a tremular incerto,
Enquanto o coração descompassado
“Sem ti, – me clama –, o mundo está deserto”.

O amor corre ondulante sobre o mar,
Vem um tormento após outro tormento:
Tudo é no mundo feito por findar.

Só não se acaba a imagem tão querida
Que sempre, eterna, está no pensamento
De quem a ti adora mais que a vida.

Informaram-me que, no geral, eram amorosas as vossas estrofes, impregnadas de meiguice e melancolia, encomiando os atrativos de uma ou de várias belas, queixando-se de seus rigores, exagerando as cruezas da vida, estrofes denotadoras, em suma, de uma alma carinhosa e delicada.
Nem repudieis essa fase do vosso passado de engenheiro militar, professor, bacharel em Matemática e Ciências Físicas, doutor por várias universidades estrangeiras. Osório, o legendário Osório, Marquês de Herval, comprazia-se, até quando senador do Império e ministro da Guerra, em rimar quadras e oitavas, não raro deleitosas.

Saíste da Escola com lisonjeira reputação, espalhada pelo país por vossos camaradas. Feita a Republica, descerraram-se-vos as portas de todas as aspirações. Aos 26 anos de idade, designaram-vos para governar a vossa terra, – a terra de Anita Garibaldi, Luís Delfino, Vítor Meireles e Cruz e Sousa.

Desde logo, revelastes prudência, moderação, bom senso, qualidades de homem de governo. Corre que o generalíssimo, chefe do Governo Provisório, instituído pelo exército e a armada em nome da Nação, se referira à vossa administração nestes termos. “O menino tirou distinção!”

Membro da Constituinte, deputado em várias legislaturas, senador, deixastes em ambas as casas do Congresso Federal, na tribuna, no seio das Comissões, no convívio de vossos colegas, documentos fartos e fortes de superioridade. Nos conflitos que têm ensangüentado o regímen, lembrastes-vos de que possuíeis uma espada e galhardo a desembainhastes em prol do poder constituído. De novo, chamou-vos o vosso Estado para a sua primeira magistratura, prova de que saudades subsistiam da outra gestão.

Daí passaste à pasta da Indústria, Viação e Obras Públicas, onde a vossa iniciativa, laboriosidade e preparo, já revelados nos cargos anteriores, encontraram propício ensejo para ostentar todo o seu fecundo vigor. No dizer do Dr. Miguel Calmon, em tanta coisa vosso colega:

“Imprimistes ao país a vibração de uma energia privilegiada, pois não houve faixa do seu solo, trecho das suas águas e mesmo, digamos assim, parte da sua atmosfera, a que não beneficiasse a vossa ação administrativa, que tantas foram as estradas de ferro, os portos, as linhas de navegação e os fios telegráficos com que o dotastes.”

Na verdade, a emérita presidência Rodrigues Alves reatou e desenvolveu os melhoramentos encetados pelo ministério Ouro Preto e a que repetidas perturbações de vários gêneros haviam dado deplorável interrupção. Osvaldo Cruz, Pereira Passos, Paulo de Frontin, Leopoldo de Bulhões, Rio Branco, contribuíram, convosco, para realçar excepcionalmente esse quatriênio, que oxalá se reproduza!

GERINDO AS RELAÇÕES EXTERIORES

Morto Rio Branco, ascendestes ao grande lugar vago, e o país reconheceu em vós, para isso, a qualidade que Alexandre Magno exigia do seu sucessor. De vossos passos e atos recentes, inoportuno fora hoje o comentário. Registremos, entretanto, com patriótico desvanecimento, a vossa viagem aos Estados Unidos e ao Canadá, onde recebestes distinções oficiais, sociais, literárias, comparáveis apenas com as de 1876, tributadas a S. M. o Senhor D. Pedro II, e que, antes ou depois deste, nenhum brasileiro, nenhum sul-americano, ainda merecera, ou mereceu.

Em terras tão distantes e diferentes da nossa, onde o nome brasileiro havia sido enaltecido pelo magnânimo monarca, por Saldanha da Gama, Salvador de Mendonça e Joaquim Nabuco, também o elevastes, pois a vossa excursão foi prolongada e magnífica homenagem à nossa Pátria, de cujo prestígio deixastes vantajosa idéia em todos quantos de vós se aproximaram. Sucedeu o mesmo na Argentina e no Chile. Quando menos, por isso: Salve!

Um dos vossos prestantes auxiliares, um dos luminares da nova geração, o Dr. Hélio Lobo, estampou a 12 de julho último, no jornal A Noticia, justificados conceitos:

“Não há diplomacia de intuitos mais nobres que a brasileira. Seja no Império, seja na República, ela se caracterizou sempre por uma invariável probidade. Papéis ostensivos, documentos reservados, todos se inspiram num alto pensamento de justiça internacional, quer quanto às nossas relações com a Europa, quer quanto às com a América. Nunca aí encontrei página, ou linha, que se não pudesse publicar, de que se corasse a nossa chancelaria... Tenho grande orgulho quando, percorrendo nossos relatórios, ou remexendo os velhos papéis diplomáticos, encontro um desses modelos de linguagem internacional e honestidade de pensamento, tão repetidos em nosso passado. Aos moços que iniciam a carreira naquela casa modelar do Itamarati, tão injustamente discutida hoje, e onde se vela de modo tão discreto quão seguro sobre a nossa situação internacional, eu tenho prazer em apontar a linha do passado e as lições do presente, em documentos verdadeiramente belos, que as escolas e faculdades deveriam ter sempre diante dos olhos.”

Nestas linhas criteriosas, está o programa que seguistes, em cinco anos de gestão no Itamarati, continuando gloriosas tradições.
Ao regressardes do Chile e do Rio da Prata, em junho de 1915, testemunhou-o, em acurado estudo, o Jornal o Commercio, desta Capital, exalçando o vosso tato, amável senso das oportunidades, clarividência, segurança de afirmações, dignidade e firmeza. Concitou o Jornal o povo a dispensar-vos carinho e entusiasmo, pois, assim, significaria o aplauso da opinião pública brasileira ao eminente cidadão, que obtivera formais triunfos de paz, de concórdia e de progresso, numa época em que o mundo se perturba e se arruína numa guerra formidável.

Testemunharam-no escritores e políticos ilustres de França, bem como o Duque de Connaught, próximo parente da família soberana da Inglaterra, governador do Canadá, onde principescamente vos hospedou.
Testemunhou-o ainda, entre outros órgãos importantes da imprensa universal, a Revue des Deux Mondes, que, a 1 de março do corrente ano, pela pena do Sr. Charles Benoist, membro da Academia de Ciências Morais e Políticas, deputado influente, apreciou a resposta de diferentes países à nota da Alemanha, relativa à guerra marítima sem restrições.

Qualificou ele de altiva a nota a Espanha; de tímida a das nações vizinhas do – ogre –, os países escandinavos, a Suíça, e a Holanda; de mais firmes as da Argentina, do Chile e do Uruguai. Destacou a do Brasil, declarando-a – très nette –, transcreveu dela longo trecho, distinção a nenhuma outra conferida, e concluiu afirmando que de tal nota partia para Berlim – un avertissement sans ambages.
A mesma Revue des Deux Mondes, a 15 de maio último, noticiando a vossa saída do governo, disse:

“Façamos justiça ao Sr. Müller, que se mostrou sempre correto, no que teve mérito, algumas vezes, dadas as suas origens e o seu próprio nome, que a ninguém permitem, nem a ele, mesmo, esquecê-las.”

Escusa assinalar a relevância, a insuspeição, a autoridade da Revue des Deux Mondes. Houve um estadista nosso que não tinha outra leitura senão a dessa revista, cabedal exclusivo de sua biblioteca. E parece que bastava, porque o estadista em questão foi dos melhores que ainda conhecemos.

MIMO SIGNIFICATIVO

No meio das competições políticas e dos labores administrativos, vários feitos e palavras denunciaram em vós propensão ática e dicaz.

Quando por aqui passou o Sr. Elihu Root, Secretário de Estado da América do Norte, brindaste-o (éreis ministro da Viação), conforme noticiou a imprensa, com um prato de indústria nacional, o qual havia pertencido a D. Pedro I, e, embaixo das armas imperiais apresentava gravado o legendário mote: Independência ou Morte!

Apreciando vivamente o mimo, ponderou o estadista norte-americano que a inscrição era forte, nobre e simpática. De fato, se ao termo – independência – acrescentarmos – integridade –, é a formula completa de nossa Pátria. Não lhe basta autonomia; cumpre que o seu território seja sempre integralmente mantido.

Mostrou louvável isenção de ânimo o ministro republicano que, para obsequiar o exímio estrangeiro, também republicano, recorreu a uma relíquia monárquica. É vosso, aliás, o conceito de que o escopo de um bom governo deve consistir em aliar a tradição do país com as exigências de sua época.
Insinuou-se que a vossa intenção, algo maliciosa, ofertando o prato histórico ao Sr. Root, foi notificar-lhe: “Podeis tirar o legítimo partido de nossas coisas, nutrir-vos em aparelhos voluntária e gentilmente fornecidos por nós. Não toqueis, porém, em nossas liberdades. Segundo determinou o fundador de nossa Nação, a perdê-las preferimos morrer!”

Se assim foi, e acredito que sim, interpretastes cabalmente o sentimento brasileiro ante o colosso setentrional.

FECUNDIDADE E CONCISÃO LITERÁRIAS

Não seríeis quem sois, se alguns de vossos passos deixassem de provocar censuras e remoques, tributo universal do renome ou da influência. Argúem a escassa produção literária, increpando os vossos poucos trabalhos impressos de curtos, insuficientes degraus para subir à Academia.
Justificando o seu voto no General Liautey para membro da Academia Francesa, disse o atual presidente Raymond Poincaré: “Não sois um escritor, mas um homem de ação, e há atos que são poemas.”

Tendes, como aquele vosso colega, general e acadêmico, a produtividade em atos, melhor porventura que a da palavra falada ou escrita – a dos heróis, a dos apóstolos. De vós mesmo escrevestes: “Sou mais afeito a fazer do que a dizer.”

Ninguém negará que a imaginação revelada na fecundidade constitui dom inestimável, é cunho do gênio. Quanto maior o número de páginas de um escritor, tanto maior a sua capacidade, ao menos, de atenção, esforço e trabalho. Admirável, estupenda, a abundância de um Victor Hugo, de um Balzac, de um Camilo Castelo Branco, de um Rui Barbosa, de um Coelho Neto, nos quais o volume e a torrente não alteram o sabor, a transparência, a pureza. Maravilhosa a floresta em que tudo – árvores, arbustos, ervas, – fosse precioso.

Mas incorre em manifesto erro quem afere o talento pela simples facilidade de produção, só julgando merecedor de apreço quem profere arengas colossais, ou constrói artigos maciços, próprios, como já observou alguém da era dos patriarcas bíblicos, quando, vivendo o homem de 400 a 900 anos, dispunha de tempo e lazer para bem aquilatar semelhantes monumentos.

Na história literária, extensa é a lista de autores, a um tempo copiosíssimos e menos que medíocres.
Dois obscuros teólogos do IV século, Dídimo e Teodoro de Mopuesta, elaboraram o primeiro seis mil e o segundo dez mil tratados. Alexandre Hardy, dramaturgo francês, redigiu seiscentas peças, o que nada é equiparado às mil e oitocentas de Lope de Veiga, que, além disso, compôs vinte e um volumes de poesias e poemas. O compilador teutônico Moser, do século XVIII, levou aos pósteros quatrocentos volumes, dos quais, é certo, se lhe contesta a autoria de dezesseis. Dirné, escritor francês, morto em 1832, totalmente esquecido, deixou manuscritos, de que o peso monta a quatrocentos quilogramas. O autor de Manon Lescaut, célebre só por este romance, engendrou cento e setenta volumes. José Agostinho de Macedo alinhou duas mil e seiscentas poesias épicas, quinhentas elegias, três mil epigramas, afora discursos, sermões, odes, comédias, tragédias, epístolas inumeráveis.

Até no imóvel Oriente, deparam-se-nos exemplos de prodigiosa uberdade literária. O imperador chinês Kiong-Long mandou preparar uma seleta das obras-primas literárias do seu país. Calcula-se que o material para isso escolhido, durante anos e anos, dê para uns cento e oitenta mil volumes. É o que afirma Ludovic Lellane em suas Curiosités biographiques. A citação de outros congêneres poderia emprestar a este discurso as dimensões do poema – Ilusão – de cem alentados cantos, mais noventa do que os Lusíadas.

Em contraposição, quantas celebridades, oriundas de uma estrofe, de um dito, de um gesto! Há quem prefira à selva um jardim, um canteiro, uma flor. Os evangelhos formam tênues fascículos. Sócrates nada escreveu. Cristo escreveu uma única vez, na areia, e ignora-se o quê. O mais substancial discurso proferido na terra, o que condensa o cristianismo em sua infinita sublimidade, o Sermão da Montanha, não durou talvez, segundo o texto sagrado, nem vinte minutos, tal a sua divina concisão.

IDEAIS REPUBLICANOS

O vosso trabalho – Os ideais republicanos – encerra, em suas elegantes poucas páginas, muita doutrina e demonstra descortino, sensatez, meditação.
Esmaltam-no numerosas sentenças aforísticas, como:

“A intolerância desgoverna; só é salutar o progresso que nasce do desenvolvimento da ordem. Governar não é mandar, é dirigir. A subordinação aos deveres cívicos é o maior título de merecimento para o cidadão de uma pátria livre. As instituições governamentais, como os processos de educação, não se julgam pela copiosidade das promessas, mas afirmam-se, ou descaem, segundo os resultados que produzem. Só a persistência da educação pode levar um povo à superioridade relativa na perfeição humana. A liberdade espiritual constitui a jóia mais pura no escrínio de uma civilização.”

São sentenças atestadoras de vigorosa aptidão generalizadora, luminosamente regidas, e primorosamente modeladas.
Quais os lemas republicanos que propugnais? Vós os enumerastes:

Quereis uma democracia sem arestas; que a liberdade espiritual não seja um lábaro de guerra contra as religiões; que se acabe com o patronato do poder central; que se faça a obra reconstrutiva da federação, ainda não encetada; que as eleições sejam puras e livres; que se combata o analfabetismo; que haja no governo uma firmeza tolerante; que se extingam os governos prepotentes e as oposições facciosas, os quais se confundem na obra comum de destruição das liberdades políticas; que se exterminem os fanatismos reacionários e demagógicos; que a justiça seja não a que se decrete, mas a que se observe, justiça no governo, no congresso, nos tribunais.

A vossa compreensão foi radical, – ainda o dizeis, – vai sendo conservadora, e será amanhã retrógrada, se não evoluirdes; olhais para o futuro, cheio de esperança e são otimismo.
Excelente tudo isto; salutar a evolução dos que, segundo a observação de um crítico, de incendiários se convertem em bombeiros!

Estes ideais republicanos, de homens de boa vontade, sem exceção os compartimos, não obstante divergirmos quanto à forma de governo. Os únicos países no globo que se aproximaram de realização deles são duas monarquias: a Inglaterra e a Bélgica.

Prezais o passado, proclamando que se deve guardar com carinho a tradição política internacional dos nossos maiores, zelando os ensinamentos que nos foram legados pelos vultos ilustres desse passado, isto é, concluo eu, pelos vultos do Império. Continuais, entretanto, inabalavelmente republicano, desmentindo esta asserção de Burke: – “Quem aos vinte anos não foi republicano faz duvidar da generosidade dos seus sentimentos, mas quem depois dos trinta permanece no republicanismo faz duvidar da lucidez de seu espírito.”

Já a haviam desmentido várias conspícuas personagens que contavam mais de trinta anos quando, a 15 de novembro de 1889, lúcida e repentinamente, se convenceram das preexcelências republicanas.

O PARLAMENTO DO IMPÉRIO

O vosso republicanismo, o da propaganda, transparece intacto aos asseverardes que as eleições no Império piores se mostraram do que as da República, e que, com a exceção de Saraiva, cuja lei eleitoral, todavia, era anti-republicana, pois se baseava no censo alto e no segundo escrutínio, coisas o menos sufrágio universal possível, – todos os governos da Monarquia, gerais e provinciais, impunham a sua vontade às votações.

Padeciam, sem dúvida, de gravíssimos vícios as eleições do Império; mas, em consciência, ninguém jurará a imaculada castidade das que se lhes seguiram.

No Império, o Conselheiro Silva Maia, por quem cabalava em pessoa o primeiro Imperador, foi derrotado pelas urnas mineiras, das quais, na República, declarou uma voz autorizada não poderão sair surpresas para o governo. Outros ministros de Estado, quais Homem de Melo, Pedro Luís, Bento de Paula e Sousa, André Fleury, Mata Machado, Machado Portela, sofreram honrosas derrotas eleitorais, que lhes determinaram a exoneração. Minas timbrou em eleger repetidas vezes Teófilo Otoni e Cesário Alvim, contra a vontade dos governantes. Procedeu da mesma forma quanto a Joaquim Felício dos Santos. Republicanos declarados como Campos Sales, Prudente de Morais, Álvaro Botelho, Monteiro Manso, Lamounier Godofredo, tiveram assento em assembléias monárquicas, da Corte e das províncias, nas quais sem estorvo pregaram as suas doutrinas. Nunca no Império, desde Pedro I até a eversão do regímen, houve Câmara unânime, no sentido de nela não se ouvir veemente oposição, jamais coartada por estados de sítio. A Câmara eleita sob o ministério Ouro Preto, com uma liberdade a que Francisco Glicério e Sílvio Romero renderam homenagem, longe estava de ser unânime, como falsamente se tem dito. Dissolvida em sessões preparatórias, já havia reconhecido os poderes de vários eleitos infensos à situação, conservadores e republicanos, como Alfredo Chaves, Pedro Luís Soares de Sousa, Carlos Justiniano das Chagas. Outros adversários haviam sido diplomados; Silva Jardim concorrera a segundo escrutínio.

No decurso de mais de sessenta anos, as Câmaras do Império honraram a Nação. De alguma sorte, todas se recomendaram. Nenhum grande talento ou grande caráter nacional se viu delas acinte excluído. Nos debates reinavam, em regra, elevação e patriotismo. Interessava-se o público pelos mínimos incidentes ocorridos no Parlamento, e os discursos, as frases, os gestos das sessões, acompanhava-os, atento e simpático, o país inteiro, a cujos representantes competia, então, o título oficial de – augustos e digníssimos. O modo como se votou a lei de 13 de maio evidenciou que, nesse Parlamento, quaisquer reformas radicais podiam ser facilmente adotadas, quando a opinião pública deveras as reclamasse, e a circunstância de prescrever a Constituição da República que continuasse em vigor toda a legislação não expressamente política do antigo regímen prova que lhe não saiu errônea a obra legislativa.

O REGÍMEN ELETIVO

Descabido fora o tentar eu, neste momento, contrabalançar os ideais republicanos, cuja base está na eleição, e assegurar o predomínio da maioria, com o do princípio oposto, o da hereditariedade, que organiza o Estado pelo modelo da família, põe fora de competição o poder supremo, ao mesmo tempo que atende às leis naturais da continuidade, do atavismo e da seleção.

Mas o vosso espírito, perspicaz e progressista, parece-me convencido de que o regímen do número colide com o da qualidade, pois, em todos os tempos e lugares, a inteligência, a ilustração, a virtude se encontram em minoria. Não se compreende que os soldados possam eleger os oficiais, e, sobretudo, o general-em-chefe. O indivíduo coletivo, escrevei um pensador, é mentalmente inferior ao homem isolado, e não adquire predicados especiais porque se agrega à massa popular. A história e a arte são antidemocráticas, obtempera outro pensador: fazem seleções, não aceitam o voto e o juízo das turbas. A eleição como processo único, a eleição soberana pela mó popular, visceralmente incompetente e incapaz, a eleição como ponte exclusiva da autoridade, sem um poder permanente, superno, desinteressado, que a tempere e corrija, afasta fatalmente a idoneidade, designa os piores. Exemplo: o plebiscito aclamador de Barrabás. Ai! das eleições puramente espontâneas e livres, numa democracia intransigente! O que as salva é que sempre alguém as refreia, as modifica, as emenda, antes e depois do pleito. Eleições, só as de um eleitorado restrito, só as os conclaves, só as das Academias. Et encore...

É, afinal, uma corporação aristocrática esta na qual hoje tomais assento, Sr. Lauro Müller. Aristocrática no sentido etimológico do termo, ou no da definição de Faguet, que chama aristocracia um agrupamento qualquer de homens, distinguindo-se por diferenças de educação e de hábitos da massa do corpo social e exercendo sobre o corpo social quer autoridade, quer influência. Autoridade e influência benéficas, bem entendido.

Se a Academia ainda não chegou propriamente a isto, deve consistir nisto o programa da Academia, e para realizá-lo vindes prestigiosamente cooperar.

O CHEFE DE ESTADO

Ao chefe de Estado – indicastes admiravelmente – cumpre agir pelo dever, estudando situações, sem olhar e ouvir pessoas, cheio de imparcialidade, sem nunca ser apaniguado de opressores contra oprimidos, nem escada por onde subam ambiciosos e vaidosos, capaz de opor as resistências da sua consciência e a fidelidade de seus deveres a solicitações de interessados nas contendas políticas.
Apoiadíssimo! Profligastes, nestas felizes expressões,

Les petites marionettes
Qui font, font, font,
Trois pirouettes,
Et puis s’en vont.

e delineastes o perfil do magistrado inamovível, vitalício, colocado acima dos partidos, delegado integral da Nação, identificados os seus interesses pessoais com os dos jurisdicionados, pois passará à sua descendência a magistratura.

Quando anuístes a substituir Rio Branco, na pasta das Relações Exteriores, anuência que qualificastes, e hoje o repetistes, de – gloriosa humilhação –, declarastes que a obra da chancelaria brasileira é a continuidade da tradição de um povo, a expressão de um acordo completo e absoluto, entre a ação do Governo e o sentimento nacional, feito à sombra de princípios generosos e pacíficos, superiores a todos os abalos. Sob a direção do Chefe de Estado, aspirastes a ser o órgão de todos os vossos compatriotas, órgão a que deve ser vedado compartilhar das lutas em que vivem os partidos no interior. Absorvido pela sua delicada e difícil missão, – acrescentastes, – é mister que o ministro das Relações Exteriores se aparte por completo do terreno onde as divergências formam o equilíbrio.
Magnificamente exposto.

É o que entendia um ex-ministro de Negócios Estrangeiros, como vós, Lord Salisbury, quando interrogado na Câmara dos Comuns sobre as vantagens do governo norte-americano relativamente ao britânico. “Pensem o que pensarem, – exclamava o célebre marques, – os partidários do Estado republicano, sobre a superioridade dessa forma abstrata. É excelente que a unidade nacional e as responsabilidades imperiais sejam corporizadas, como na Inglaterra, em uma pessoa educada desde o berço para tal efeito e que, para chegar ao poder, não se veja levada a ter como inimiga a metade dos eleitores da Nação, e que, por outro lado, não devendo a sua magistratura a influência de quem quer que seja, nenhuma obrigação deva reconhecer.”

Declarastes, mais, ao assumir aquele posto governamental, que obedecíeis ao dever prescrito a todo o homem público, de não medir sacrifícios pessoais, quando se trata dos altos interesses da Pátria. Mas rematastes que se fechava assim a vossa carreira pública, na política interna. Mais tarde, insististes, – quando lembraram o vosso nome para a suprema gestão, que estáveis impedido de aceitar qualquer cargo público de eleição, como de ter candidatos, por motivos de elevada conveniência pública, inspirados em razões de consciência, que não se revogam por opiniões de terceiros, por mais lisonjeiras e autorizadas que possam ser.

Confesso que aqui não vos compreendo, nem vos aplaudo. Por que essa renúncia? Qual o fundamento de semelhante abdicação? Descrestes do sistema eletivo? Repugna-vos a política interna, base da externa?

Assim não deve ser. Correm-vos deveres e responsabilidades que vos impõem uma diretriz e uma ação diversas das que pretendíeis adotar. Sempre cumpristes os primeiros, jamais fugistes às segundas. Quo non ascendam, – eis a divisa que vos quadra.

AMADOR DE ARTE, ORADOR, CAUSEUR, HOMEM DE ESPÍRITO

Tencionasse eu estudar integralmente a vossa individualidade, e teria de inquiri-la em outras várias interessantes feições.

Há em vós um fino e esclarecido amador de arte, possuidor de uma das nossas mais escolhidas galerias de pintura, o que revela apurado senso estético. Há em vós um orador fluente, elegante, comedido, sabendo dizer o que quer, como quer, só o que quer, e quando quer, do que são prova os vossos inúmeros discursos diplomáticos, nos quais jamais escapou uma frase deslocada, uma palavra dispensável ou insuficiente. Há em vós um delicioso causeur, e a causerie verdadeira, apanágio de poucos, é modalidade artística, requintada, sutil, maravilhosa. Há em vós um homem espirituoso, arguto e solerte, de quem por ali correm ditos à Talleyrand, com a malícia, mas sem a maldade deste, antes de ordinário impregnados da vossa substancial bondade. Este, por exemplo: – Em vossa Tusculum de Jacarepaguá, no caráter, talvez, de zeloso presidente que sois, da Sociedade Nacional de Agricultura, dais-vos à criação de aves. No bem cuidado galinheiro, destaca-se a pitoresca plumagem cinzenta, pintalgada de preto e branco, de numerosos galináceos da Angola. Nédios, fecundos, garbosos, satisfeitos, livres, – pois ariscos se mostram à disciplina do poleiro, – vivem a repetir que estão fracos!
“Quando os vejo e os ouço, – comentastes, – costumo pensar no Brasil...”

EPISÓDIO SIMBÓLICO

É significativo um episódio de vossa adolescência.
Estudáveis na Escola Militar, estabelecida na Praia Vermelha, junto ao Pão de Açúcar.

Eram, então, difíceis as ascensões. Vingar o cume da montanha importava empreendimento áspero e arrojado. Narrava-se como façanha heróica a de vossos companheiros que galgaram o gigantesco penhasco, – a fim de colocar na falda do píncaro um enorme – Salve! – quando Sua Majestade D. Pedro II regressou da Europa, um ano antes da República, para a qual a Escola tanto concorreu, sendo vós dos que foram acordar Benjamim Constant e Deodoro, na madrugada histórica.
Apareceram na Escola dois inteligentes viajantes estrangeiros, e aos oficiais pediram guias que os levassem ao topo do Pão de Açúcar. Designou-vos para a incumbência o comandante, entre outros motivos, porque faláveis o idioma dos visitantes e lhes daríeis vantajosa amostra da nossa mocidade militar.

Perguntaram-vos os excursionistas se sabíeis bem o trajeto. Respondestes que os havíeis de guiar. E apenas de tradição conhecíeis o caminho, nunca o tínheis percorrido... Mas a estrangeiros não quisestes confessar ignorância em assuntos de vossa terra nem permitir que eles se afastassem desajudados. A incumbência, demais, implicava algo de perigoso, que o vosso brio não permitia enjeitar.
Na manhã seguinte partistes na frente, orientando-vos por incompletas indicações. Ao transpor broncas veredas, mais de uma vez quase rolastes por aterradores despenhadeiros. Em certo trecho, marinhastes o íngreme rochedo, apoiando-vos em pregos nele cravados, à guisa de degraus.
Sempre, porém, na dianteira, mãos e joelhos escalavrados, superando dificuldades inverossímeis, atingistes, dia alto, a culminância, e o sublime panorama descortinado compensou o esforço, a fadiga, a temeridade.

No meio do embevecimento, ante a glória do céu e do mar, lembrastes-vos de que, no dia seguinte, havia na Escola uma sabatina e que desar vos fora a falta, embora por justo motivo.
Caía a noite. Convidastes os companheiros a regressar; hesitaram, recusaram, alegando a imprudência da descida, na escuridão.

Deixaste-los; e sozinho, intrépido, baixastes, margeando abismos, correndo riscos muito piores do que os da ida, expondo-vos, em cada passo, a atroz desastre.
Chegastes quase à hora do concurso. Mal tivestes tempo de mudar a roupa, dilacerada pelas arestas e espinhos. Com o habitual realce, como se nada anormal vos houvesse ocorrido, lidastes no torneio escolar.

A Academia deseja que esse lance vos sirva de símbolo: que a vida vos continue uma ascensão porventura arriscada, mas impávida e patriótica, a vos deparar, no alto, horizontes intérminos, exuberantes de luz, a incomparável luz do Brasil.

E, quando desçais, envolto, acaso, em sombra e perigo, que seja no cumprimento do dever!