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Discurso de posse

A DIPLOMACIA DO BARÃO DO RIO BRANCO
(Excerto do Discurso de posse proferido em 16.08.1917)

Cada entidade, pessoa ou nação, vive essencialmente de dois elementos conjugados; um é a sua força intrínseca, expressão da sua vitalidade, representação do seu valor, índice da mesurabilidade dos seus destinos; o outro adquire-se no convívio da sociedade e do mundo e pela atividade pela inteligência, que abrem as portas para a estima e para o conceito, que só o caráter sabe adquirir.

Muito e preciosamente vale a força extrínseca, que vem do apoio; ela, porém, não se fixa duradouramente sobre os indivíduos que se desprestigiam nem sobre as nações que se subalternizam na anarquia interna ou na dobrez pasmada de um culto subserviente por alheias grandezas.

Aquele que de si próprio não tira o vigor para a luta da vida e a energia para afrontar-lhe as agruras e os riscos, perece ou esmaece na competição, ou trota, despersonalizado, sem alma, inconsciente do seu destino, tirado à brida pelos mais fortes, na estrada que conduz à servidão.

Não haverá crédito quem valor não representa, material ou moral, e se a existência daquele atrai o enxame dos aderentes do êxito, só a boa fama sói criar e conservar amizades e respeito. Por isso, para o indivíduo, como para a Nação, o êxito e a nobreza da sua existência principalmente dependem dos cuidados que põem na vida interior: no amanho dos seus bens, no cultivo das suas forças inteligentes e, sobretudo, no aperfeiçoamento das suas qualidades morais. Para os que assim se fortalecem, abrem-se de par em par as portas do mundo, ávido da sua mercancia, curioso das suas letras e respeitoso da sua pessoa.

Se, ao contrário, ocupando vaidosamente o melhor do seu tempo e do seu esforço em saber o que vai na sociedade e no mundo, ao invés do apurar como neles vai, deixa que vingue a discórdia e a desordem na sua vida, cedo atenta o mundo na gralha intrusa, aparta-se do seu trato, recusa-lhe o convívio, quando não a depena às bicadas.

A co-participação na vida de relações gradua-se sensatamente pelas forças e posses de cada um, e ainda que haja casos em que a nobreza obriga ou de dignidade que impõem sacrifícios extremos, não fica menos certo dizer-se que afundam no erro e se danificam os que, fora daí, se aventuram em empresa superior à sua condição. Quantos tereis visto entre os homens, e nem de outro modo seria entre as nações, que, na ilusão temerária de brilharem no mundo em cometimentos para que não têm cabedal nem aparelho, perdem o crédito que possuíam, quando poderiam recobrar o que nele houvesse de abalado.

Buscam o êxito e colhem desilusões; partem cercados de amigos e regressam oberados de encargos, que mais lhes desorganizam a vida, devorando, na contribuição forçada e impiedosa, para satisfazê-los, o sossego da sua casa e a economia do seu trabalho.

Não era esse o aspecto quando aqui chegou o Barão do Rio Branco, que, por encontrar a vida nacional prestigiadas no interior e no exterior, logo julgou de feição intensificar a atividade da nossa chancelaria. Clara visão do momento para as iniciativas que teve gloriosas! A ausência o desprendera das intimidades perturbadoras e o desvencilhara das competições invejosas; os seus serviços lhe haviam criado uma auréola de respeito e de admiração propícia ao surto da sua atividade.

Dera-lhe a natureza a energia do querer, deu-lhe o ambiente a força do poder.

Crepitavam as paixões em torno à questão acreana, que a gente do Norte, viveiro de combatentes sóbrios e impávidos, sublevara no desbravamento dos confirs amazônicos, abrasileirados pela atividade do Nordeste brasileiro.

Capitaneados pela audácia, que é apanágio da bravura dos pampas, os descendentes dos Albuquerques, depois de subirem rios sem fim, sacrificarem-se em territórios malsãos e sofrerem todos os desconfortos e contratempos no amanho de uma vida nova e rude, transformavam-se, diante do lindeiro contestante, em defensores invencíveis dos direitos pátrios.

Afortunado terreno para a estréia governamental de um espírito que vinha de justar vitorioso em duas formidáveis contendas fronteiriças! Chegar, ver e vencer seria a fórmula sintética de relembrar o seu primeiro grande ato de governo, se não ocorresse memorar que a sua grande vitória não teve caráter cesariano, antes poupou o sangue de povos irmãos e consumou-se sem desrespeito aos direitos soberanos dos países litigantes.

Era esse o domínio predileto da sua atividade e não seria afoiteza nem injustiça afirmar que na sua atuação para delimitar o território nacional principalmente reside o seu brasão de glória, ainda que por muitos outros títulos bem merecesse da pátria. Defensor dos nossos direitos e interesses perante árbitros, em dois casos de suma gravidade; um que ao sul ameaçava deixar-nos virtualmente separados do nosso território meridional, em caso de conflito material com o país contestante; outro que ao norte lidava por instalar no estuário do Amazonas uma forte e poderosa nação do velho continente, ambos compreendendo vastas e ricas superfícies territoriais; as glórias dos grandes sucessos que aí colheu não morrerão com os ecos das aclamações que soem retumbar em torno ao vencedor, porque sobrevivem nas suas Memórias, monumentais repositórios de saber indígena, alicerçando, documentalmente, uma argumentação a que o seu cabedal jurídico e a sua cultura geral emprestam claridade lógica e fundamentos indestrutíveis.

Para consagrar a superior habilidade de qualquer negociador, homem de governo ou diplomata, bastaria, aliás, por si só, a solução a que ele afinal chegou na questão acreana com o Tratado de Petrópolis, afastando a iminência de um conflito sangrento para mais estreitar os lagos de amizade entre as duas nações contendoras.

De outros poderíamos ainda fazer lisonjeiras menção, se não fosse desnecessário repetir o que todas as memórias patrícias conservam vivaz.

Que admirável obra a deste homem! E quanto se impõe à meditação dos que lêem e observam para pensar e pensam para agir! Seculares e intrincadas contestações ruíram diante do seu esforçado saber e do seu querer maneiroso, mas persistente; áreas maiores que nações, escoimadas de lides, incorporaram-se definitivamente ao domínio pátrio. Sem o atropelo de um direito e sem o sacrifício de uma vida! Para poupá-las a nós e aos nossos vizinhos, compareceu perante árbitros e diretamente negociou acordos que, eliminando velhas e ásperas controvérsias, extinguiram ameaças de conflitos armados. Nas pugnas pelo direito foi tão digno e incansável no reclamo dos nossos, quão sereno e justo no reconhecimento de alheios títulos.

Tão vibrante foi a sua voz contestando pretensões de países poderosos, quão espontânea e nobre a sua iniciativa em conceder ao nosso vizinho do Uruguai o condomínio da Lagoa Mirim, cujo domínio a prudência dos nossos antepassados havia reservado privativamente ao Brasil por motivos de ordem política que o tempo esmaecera.

Página de justiça internacional que o Brasil escreveu primeiro na história das nações!

Legatário dos benefícios morais e políticos do arbitramento, fez-se, mais que nenhum homem de governo antes dele, o paladino do instituto da arbitragem, consagrado por sua perseverança e com o seu nome em dezenas de tratados, dos melhores do seu tempo.

Obra de pacifista fez naqueles acordos territoriais e nestes Tratados de arbitragem, mas a sua superior visão de estadista e o conhecimento do mundo e do seu tempo lhe permitiram jamais inscrever-se entre os desavisados que confundem o nobre amor da paz com a criminosa imprudência do abandono das armas. Ao contrário, comentador da nossa história militar, diplomata e homem de governo, invariavelmente primou entre os que estimam e advogam a grandeza das instituições militares.

Delas sabia que, democraticamente organizadas, vindo depois da escola e do catecismo, constituem fecunda lição de educação física e de energia moral; de disciplina, subordinação e comando; de hierarquia e organização; de civismo e de dignidade pessoal e coletiva; de espírito de sacrifício, que homogeneíza todos os filhos de um mesmo país no culto da Pátria, escola sobretudo necessária às nações que se vão formando à custa de imigrações de povos e línguas diferentes.

Pela disposição aos sacrifícios extremos se pode medir o patriotismo de um povo; na previsão em educá-lo e aparelhá-lo para afrontar todos os riscos da paz e da guerra mede-se o zelo e a capacidade dos seus estadistas. Por criminosos de lesa- humanidade devemos tê-los se propositalmente norteiam a política em rumo para a guerra, inevitável no mundo somente porque, como nas estradas desertas nas vielas escusas, há malfeitores nos paços reais e nas casas de governo.

Mas, porque estes existem, crime e monstruoso seria também de lesa pátria e de lesa-humanidade abrir-lhes as portas da vitória, deixando pela ineficácia de uma resistência mal aparelhada que a Pátria perecesse, triunfando a violência estrangeira e criminosa sobre o direito nacional inerme.

Desarmar a Nação é desarmar todos os direitos que ela representa.

Correm maliciosos os tempos que vivemos e ainda que muito se deva esperar, na sociedade das nações, como na das pessoas, que os costumes subam de nível moral, nenhuma garantia possuirá de viver livre e soberano o país que na sua própria energia não funde o seu direito à vida independente.

Para a paz e para a liberdade, que não existem sem justiça, devem nortear-se os destinos nacionais; mas no roteiro de todas as travessias há riscos e perigos que só a prudência previdente, com o auxílio da coragem, sabe evitar ou vencer.

Estas e outras nobres qualidades existiam vigorosas na alma de Rio Branco.

A sua colaboração de fora do governo e a sua ação dentro dele afastaram do nosso caminho as tempestades que ameaçavam perturbar a demarcação das linhas fronteiriças.

Do lado do mar, com as nações que diretamente não vizinhamos, o mesmo espírito de concórdia assegurou-nos, durante o seu governo, tranqüilidade e respeito.

Deste fez ele o seu maior baluarte, no trato com as nações, impondo-se à consideração de todas por uma irrepreensível conduta, dignamente traçada e nobremente mantida.

Tão solícito em render ou retribuir cortesias, quão pronto na réplica às desatenções ou impertinências.

Todos sentimentos e é esse talvez o segredo da carinhosa amizade que o povo brasileiro lhe devotou que, após tantos anos de ausência no estrangeiro, não trouxera para o governo do seu país sentimento maior que o da responsabilidade de governá-lo, nem afeições que turbassem a visão dos seus interesses e destinos. Nem noutra realidade assenta a grandeza de um homem de Estado, senão na fortaleza de ânimo para afastar de si mesmo as suas e alheias paixões pessoais, desbravar o caminho de todos os pendores subalternos e perturbadores, para identificar-se com as aspirações e nobres ambições da coletividade.

Não as tinha, nem as tem o Brasil, mercê de Deus, que o mais nobre dos seus filhos não nas possa proclamar à face do mundo.

E o mundo o sabe pelo que em Haia ouviu da voz sem par do presidente desta casa e viu depois confirmado nos pronunciamentos do povo brasileiro, referendando as credenciais do seu embaixador ao cobri-lo de aplausos, e de louvores as suas doutrinas.

Ali, como sempre, estivemos inteiramente livres para defender com sinceridade e veemência o direito contra a força, liberdade contra a opressão, a justiça contra a prepotência. Porque não temos na consciência nem na mente vestígio de atentado contra os direitos de outra nação, ardentemente ansiamos por uma lei internacional, filha do direito e da moral, que reja as relações entre os Estados, validada, nas infrações que sofrer, por tribunais soberanos.

Fizemos da igualdade das soberanias um dogma da nossa política internacional, relegando para o passado idéias de hegemonia, co-irmã do imperialismo desenfreado que está assassinando e incendiando a Europa e quase o mundo inteiro.

Não ambicionamos um palmo de alheios territórios, nem pretendemos governar além das nossas fronteiras. Dentro destas, sim, e soberanamente, sem satisfações a poderes estranhos, nem subordinações a colônias estrangeiras, que só nos apraz ter como hóspedes e amigos enquanto se não esqueçam de que somos os donos da casa.

Portas mais largas não tem outra nação por onde entre o forasteiro, se agasalhe e trabalhe, livre na sua atividade, nas suas crenças e nos seus ideais, acolhido por uma hospitalidade que, sem superior no mundo, lhe dispensam os sucessores daquela "gente boa e de boa simplicidade" que Pero Vaz Caminha traçou na singeleza graciosa da sua carta histórica.

[...]

(Discursos acadêmicos 1914-1918, vol. 3, 1935.)