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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Josué Montello

Se eu, nesta solenidade de posse, em vez de falar por último, de acordo com a tradição da Academia, houvesse falado em primeiro lugar, para vos dar as boas-vindas em nome e vossos confrades, ter-vos-ia perguntado:

– Que viestes fazer aqui, Sr. José Sarney, se já a vida plenamente realizada, no plano da glória política?

E não seria fora de propósito essa curiosidade em voz alta, nesta noite, nesta hora e neste salão.
 
Porque existem, como sabeis, dois tipos de perguntas: umas, que formulamos para que sejamos esclarecidos; outras que apenas formulamos para nos regozijar com a resposta que já conhecemos.

Para quem alcançou na vida pública os cimos que já conquistastes, como deputado federal, como Governador do Maranhão, como senador da República, como presidente de um grande partido político, a glória da Academia poderia parecer um título a mais, para adorno ou enfeite da vossa biografia.

Ora, o primoroso discurso que acabais de proferir, e que este salão aplaudiu com as suas palmas efusivas, já é, por si mesmo, a resposta à minha pergunta. Acabastes de ser laureado na prova oral do ingresso na Academia. Sois incontestavelmente um escritor, por vocação e aplicação, com o perfeito sentido da palavra esteticamente concebida.

Não sei de outro ofício – fora do sacerdócio – que traga em si maior soma de responsabilidade do que o da escrita elevada à condição de obra de arte. Cada um de nós – escrevendo – é a testemunha que está com a palavra. O que dizemos, fixado no papel, lança-se para o futuro, como um depoimento. Estamos presos ao nosso tempo, e a imagem desse tempo está em nós, projetando-se na página que vamos compondo. Machado de Assis, aparentemente fechado na sua Arte, é o grande memorialista da sociedade que se movimentava à sua volta, quase sem dar pela figura miúda e morena do romancista de Dom Casmurro.

Há dez anos, quando publicastes um de vossos livros mais notáveis, foi assim que Austregésilo de Athayde vos saudou, no seu artigo do jornal:

Primeiramente louvo a coragem do Governador José Sarney ao publicar um livro de contos em pleno exercício de sua tarefa política do Maranhão. Os homens de governo em geral consideram indigno de suas responsabilidades devotar-se às Letras. Temem ser tratados como literatos, o que no Brasil é ainda uma forma de incompatibilidade com o senso prático do governante. Depois quero louvar Norte das Águas, coletânea de contos, alguns dos quais ficarão inesquecíveis no patrimônio literário.

Bastaria esse louvor, entre os muitos que então recolhestes, para que vos orientásseis, ouvindo o canto de sereia do Presidente da Academia, no sentido desta Casa. Durante um decênio ficastes ao longe, aguardando a ocasião propícia. Para que viésseis até aqui, nada mais fizestes do que seguir o caminho que principiastes a percorrer; ainda menino e moço, em nossa província natal.

Há 30 anos, ou pouco mais, quando vos iniciastes na vida pública, em São Luís do Maranhão, foi pelas Letras que começastes. Como na origem de toda vocação há um exemplo, nada mais natural do que essa inclinação das primeiras horas. E nessa cidade, com uma ou outra exceção, só se veem praticamente monumentos a homens de letras. É certo que o político Benedito Leite, dominando uma de nossas mais belas praças, ali está por uma razão de ordem intelectual, visto que se lhe repete a frase bravia segundo a qual preferia cortar a mão direita a ter de assinar o decreto que suprimiria a Escola Modelo. O Duque de Caxias, reproduzido no seu monumento carioca, foi colocado junto ao Quartel da guarnição federal, longe do bulício de São Luís.
 
Na velha cidade, misturando-se ao povo, estão os poetas, os prosadores, os mestres de que nos orgulhamos. Num dos extremos, ergue-se Gonçalves Dias, no topo de sua palmeira de mármore, cercado de palmeiras vivas e verdes onde não cantam mais os sabiás. Não cantam na vida urbana, afastados para as matas distantes, porém cantam nas nossas lembranças. Porque a “Canção do Exílio”, para quem teve o privilégio de nascer no Maranhão, é, em qualquer tempo, a nossa canção natural, pronta a dar forma aos nossos suspiros:

Minha terra tem primores
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar – sozinho, à noite –
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá.

Do outro lado da cidade, em pleno burburinho de sua praça principal, o grande João Francisco Lisboa, mais do lado, no bronze de seu monumento, estava a ler um jornal; porém, na verdade, como jornalista, parece recolher as murmurações do povo à sua volta. Foi ali, ao pé de seu monumento, que fizestes o vosso primeiro discurso político, e é de supor-se, pela veemência de vosso improviso, que João Lisboa, embora de bronze, vos deu a sua atenção. Antes, já ele a tinha dado à minha geração, nos anos trinta, quando por ali andávamos com a nossa farda do Liceu Maranhense. Um de meus companheiros, o poeta Sebastião Correa, pequeno, olhos verdes, tocou naquele pedestal a melhor ária de seu violino, ao saber que havia eclodido em São Paulo, em 1932, a Revolução Constitucionalista, e assim eu o recordei no meu romance A Coroa de Areia. Éramos românticos, éramos poetas, e éramos também políticos.

Ao contrário de vosso antecessor, que interpretava o pensamento do povo na praça pública com o discurso que trazia escrito, tendes sido o intérprete da multidão com o discurso que essa multidão instantaneamente vos inspira. Algumas vezes vos vi assomar no palanque dos comícios, com o vozerio do povo em derredor. Aos poucos o silêncio se estendeu na amplidão da praça, e era a vossa palavra que se alteava, fremente, dominadora, até que as palmas explodiam, por entre a estralada dos foguetes, no entusiasmo e na emoção de vossos correligionários.

Na Academia, a vibração usual é mais comedida. Lembra a do Senado da República, que é igualmente a vossa Casa. Mas a Academia também sabe aplaudir com o júbilo desta noite, embora faltem aqui os foguetes e os vivas do Largo do Carmo, em São Luís, ou os foguetes e os vivas, da Praça José Sarney, na cidade de Pinheiro, que vos deu o berço.

Cumpre recordar que, antes de virdes ao nosso encontro, já figuráveis entre os membros efetivos da Academia Maranhense de Letras, de que fostes presidente. Estais assim afeito à vida acadêmica. Inspira-nos aqui o bom convívio. Dizia Maurice Barrès, a propósito da glória das Academias, que é mais fácil ser imortal vivo do que depois de morto.

Fizestes bem quando vos orientastes para a nossa companhia. Trazeis para o acervo de nossas glórias todas as conquistas de vossa vida pública, aureolada pelo saldo de juventude de que nos dais bom testemunho. Nossa imortalidade, ao contrário do que se presume lá fora, não é a vida perene – é apenas o nome repetido. A repetição do nome, que conduz à ressurreição da obra literária, constitui todo o nosso mistério. Uma geração vai, outra geração vem, e assim como repetimos os nomes dos nossos antecessores, nossos sucessores repetirão o nosso nome, com igual sentimento de veneração afetuosa. A cerimônia desta noite vos associa para sempre à Poltrona de Tobias Barreto, de quem disse Graça Aranha, no discurso com que saudou Sousa Bandeira, ter sido talvez o pensador que, no Brasil, maior vastidão de infinito pôde descortinar.

Estou inclinado a crer que, ainda em São Luís, vos iniciastes na fascinação de Tobias Barreto por intermédio de Graça Aranha. Sim, é verdade. Porque foi este, no seu livro de memórias, O Meu Próprio Romance, quem abriu à minha geração e à vossa, graças ao mesmo mestre, Antônio Lopes, o caminho para a obra do mestre sergipano. Essa devoção cresceu conosco, e para perdurar pelo resto da vida, a despeito de todo o mal que Tobias soube dizer, no calor da paixão polêmica, contra os velhos padres do Maranhão.

Rodeado de escritores, quer nas praças públicas, quer nos nomes das ruas e avenidas da capital maranhense, quer nos encontros dos cafés e das salas de aula, tanto no Liceu quanto na Faculdade de Direito, tínheis de encontrar a sedução das Letras, que abria para o vosso espírito o horizonte da vocação irreprimível.

Joaquim Nabuco, louvando-se na própria experiência, reconhecia que as impressões da infância nos acompanham pelo resto da vida. E ilustrava o reparo com a conclusão destas palavras: “Os filhos dos pescadores sentirão sempre debaixo dos pés o roçar das areias da praia e ouvirão o ruído da vaga.” Ele próprio, onde quer que estivesse, supunha pisar a espessa camada de cana que cercava o engenho de sua meninice e escutava “o rangido longínquo dos grandes carros de bois”.

Numa admirável página de recordações que publicastes este ano, na imprensa de São Luís, no momento em que todo o Maranhão festejava o vosso primeiro meio século de vida triunfante, afirmastes que, de vossa infância, além do culto que vos inspiraram vossos pais, guardastes as imagens de dois avôs: um, o velho José Adriano da Costa, pelo lado paterno; outro, o velho Assuero, pelo lado materno. Do primeiro, deixastes este depoimento:

Os primeiros anos de minha vida são povoados pela visão desse avô de hábitos rígidos e austeros, que lia Casimiro de Abreu e amanhecia tangendo os animais a recitar os clássicos. Sua estante de vidro tinha Herculano, Eça, Camilo e, dos brasileiros, Gonçalves Dias, Fagundes Varela. E de Camões, não só conhecia de memória os Cantos de Os Lusíadas, como as redondilhas e os sonetos.

O outro, o velho Assuero, nascido na Paraíba, enraizado no Maranhão pela família, vos confessava, aos 90 anos, que era perdido por três coisas: mulher, política e rapé.

Um dia, ouvindo o velho Assuero falar com saudades de seus tempos nordestinos, vós lhe perguntastes se ele queria voltar à Paraíba. E a resposta foi imediata:

– Não, meu filho, se a minha alma tiver vergonha, não sairei mais do Maranhão. Até neto governador eu já tive...

Esses dois avós explicam – como há pouco reconhecestes – os dois caminhos de vossa vida: sois escritor, continuando a sensibilidade literária do velho José Adriano da Costa, e sois político, continuando a argúcia, a paixão e o espírito de luta do velho Assuero.

E como ambos vieram do povo, tangendo o seu gado ou amassando o barro da própria casa, trazeis no sangue a alma da vossa gente, com o sentimento de sua simplicidade e de sua índole combativa, refletidas no vosso modo de ser e na vossa tenacidade.

Rétif de la Bretonne era de parecer que os pais são os nossos deuses visíveis. Para vós, Sr. José Sarney, não apenas os pais, que vos deram a vida e a formação para o mundo, são esses deuses visíveis, mas também os avós, que perduram convosco, e repentinamente repontam num gesto, numa palavra, num impulso, numa reação instantânea, dando-vos a certeza de que eles vos acompanham, amalgamados ao vosso ser.

Se um vos trouxe à Academia, repetindo-vos as estâncias de Os Lusíadas, ambos fizeram de vós o intérprete do povo, com o gosto de suas cantigas, a sedução de sua sabedoria, a atração de seus folguedos, e a identificação com as suas revoltas e aspirações. Por vezes, ao falardes na praça pública ou na tribuna do Senado, imaginais que sois vós que estais com a palavra. Não, não é verdade: são eles que prevalecem nos vossos arroubos, que se exaltam na vossa eloquência, que se retraem nos vossos silêncios, e que também vos advertem, nos momentos em que o homem público se volta sobre si mesmo e se interroga sobre os seus caminhos e descaminhos. Porque a verdade, Sr. José Sarney, é que cada um de nós traz consigo a sua árvore genealógica.
 
O povo de que sois intérprete, tanto no plano político quanto no plano literário, tem por instinto natural o gosto das Letras. Não é preciso ouvir uma cantiga de bumba meu boi, em junho, pelo São João, para sentir esse pendor na toada e nos versos dos cantadores maranhenses. Por vezes, numa conversa de rua, no Portinho, no Cais da Sagração, no Largo do Desterro, surpreendemos uma palavra, uma frase, ou uma simples entoação, que confirma a inclinação literária de nossa gente.
 
O saudoso Thiers Martins Moreira, numa de suas idas a São Luís, quis ouvir gente do povo sobre o famoso navio de onde sai, numa praia maranhense, todas as sextas-feiras, o Rei D. Sebastião, de Portugal. E interrogou a mulher rústica que, no fundo de uma barraca, vendia café:

– A sra. já viu esse navio?”
A mulher alongou o olhar, e não tardou a responder, despertando a atenção de Aurélio Buarque de Holanda, que acompanhava o diálogo:
– Vi dizer que passava esse navio antigo.
E Aurélio, para Thiers, de olhos crescidos:
– A resposta dessa senhora é um perfeito verso alexandrino.

Assim, na orla do cais, em São Luís, os versos hão de ter vindo também ao vosso encontro, naquela língua certa do povo, a que se referiu Manuel Bandeira num de seus poemas. Por isso, ainda menino e moço, Sr. José Sarney, aprendestes com a nossa gente a aprimorar a sensibilidade estética da palavra, podendo interpretar nestes versos matinais os rumores à vossa volta:

O sino bate
bate na torre
na velha torre
da velha Sé.
O vento vem
vindo de longe
o seu gemido.
Os homens duros
de olhos tristes
levantam o corpo
do marinheiro
de olhos fechados
sob a lingada.
E o vento parte
parte nas ondas
bate nas croas
e vai chorando
as três Marias
que ficaram à espera
de quem não veio
do cais do porto.
Rosa que morre
vento que bate
sino que plange
na torre velha
da velha Sé:

As três Marias
do cais do porto.

Ao tempo em que publicastes esse poema evocativo, que tem para mim rumor nostálgico das marés maranhenses, já tínheis vosso grupo de companheiros. Eram poetas, prosadores e artistas plásticos, que se reuniam ao fundo de uma movelaria, no Centro de São Luís. Lembro alguns deles: Bandeira Tribuzzi, Carlos Madeira, Luís Carlos, Lago Burnett, Ferreira Gullar, Domingos Vieira Filho, Lucy Teixeira, Antônio Luís. A esses companheiros dedicastes o vosso livro de estreia, A Canção Inicial.

E é nesse livro matinal que vos interrogáveis:

Mundo, meu mundo
que vários caminhos
em ti vão dar?

Já então a vida vos obrigava a tentar decifrá-la, com a ansiedade própria dos moços que anseiam encontrar a vereda esquiva que os há de levar à estrada real. E não vos faltava, nessa hora apreensiva, o sentimento trágico do mundo, expresso nestes versos:

Meus olhos estão cobertos de noite
para olhar o tempo, o casario e o muro
envelhecerem.

Por fim, nesse repassar de lembranças mortas, haveríeis de descobrir, como uma síntese, como um símbolo, nas velhas paredes fendidas, o musgo e o tempo escondidos nos escombros.

É curioso que, em A Canção Inicial, falte a nota política, que seria indicativa da vossa personalidade, ali mesmo, na nossa ilha rebelde. Tínheis olhos para ver os meninos abandonados e para contemplar as águas do Bacanga. Mas ainda dormia no vosso espírito a força empreendedora que represana essas mesmas águas, na hora em que o político dominaria o poeta, sem contudo destruí-lo – dando-vos a poesia de ação construtiva.

Não quero ir adiante sem me deter um momento para vos falar de nossa ilha de São Luís. Alteada nas suas colinas, a olhar o mundo em volta pelas janelas de seus mirantes, dir-se-ia esquecida de si mesma, com seus sobrados velhos, seus azulejos, suas fontes públicas, suas ruas estreitas. Já escrevi sobre ela e a sua gente sucessivos romances, e sinto que ainda não contei tudo quanto me inspiram aquelas sacadas de ferro, aquelas calçadas de cantaria, aqueles balcões sobre a rua. Não sei se já reparastes que há uma espécie assim de riso divertido nos beirais de telha de nossos sobrados. Como que esses berais dali nos observam, com seus bigodes retorcidos para o alto, ao mesmo tempo que se enchem de luz as casas espaçosas com os braços abertos das janelas escancaradas.

No entanto, convém advertir que o povo sereno que por ali transita, ladeiras abaixo, ladeiras acima, traz consigo a vocação da rebeldia. Lembra-nos José Veríssimo, na sua História da Literatura Brasileira, que, no século XVII, o governo português mandou fazer devassas contra os “homens versistas” de São Luís. Sinal de que, já por esse tempo, o riso maranhense tinha o seu pico político. Nesse mesmo século, precisamente em 1654, ao pregar ali, junto ao mar, o seu famoso sermão aos peixes, à maneira de Santo Antônio diante do Adriático, o Padre Antônio Vieira chamou por eles, para lhes dizer que nós, maranhenses, vivíamos a nos comer uns aos outros. O grande jesuíta, agastado conosco, não nos passou a mão pela cabeça. Pelo contrário: foi severo, foi implacável. E por quê? Porque, sem outro recreio na cidade pequena, distraíamos a nossa imaginação com a vida alheia. Murmurava-se nas ruas e praças, murmurava-se no interior das igrejas, e com graça, e com riso, e com malícia contente. Defeito? Não: excesso de fantasia, pendor para o pico e o travo de ironia e da graça.

Sem isso, com que distrairíamos as nossas horas? No século XIX, quando a imprensa apareceu no Maranhão, logo floresceram os pasquins políticos, em que as facções se digladiavam em bom Português. Por vezes, eram gigantes que se batiam: de um lado, Sotero dos Reis; do outro, João Francisco Lisboa.

Certa feita, assistindo por acaso a um bate-boca de orla de calçada, ouvi uma mulher do povo dizer ao peixeiro, que lhe vendia o peixe furtando na conta:

– O senhor está querendo fazer machavelismo comigo!

Machavelismo? Que era aquilo? E de pronto me acudiu: maquiavelismo! A palavra erudita, corrente nos pasquins políticos locais, vulgarizara-se de tal forma, com a pronúncia imposta pelo ch da grafia originária, que ali estava ela, na língua do povo, como um testemunho a mais da glória universal do mestre florentino.

A Política e as Letras, Sr. José Sarney, se já não estivessem harmonizadas em vossa personalidade como herança de vossos antepassados, encontrariam essa concordância na índole do povo de que sois representante. Igual concordância se observa na vasta linhagem de altas figuras maranhenses que vos antecederam no mesmo privilégio, e de que cito algumas, ao acaso da memória: João Francisco Lisboa, Sotero dos Reis, Odorico Mendes, Gomes de Souza, Coelho Neto, Godofredo Viana, Domingos Barbosa, Dunshee de Abranches, Humberto de Campos, Clodomir Cardoso, Viriato Correia, Astolfo Serra.
 
Na casa dos 30 anos, pelo voto conquistado na praça pública, subistes as escadas do Palácio dos Leões, em São Luís, para governar o Maranhão. Antes de vós, somente outro poeta, Astolfo Serra, tinha alcançado a mesma glória. Vínheis dos sonhos líricos, tínheis passado pelo realismo necessário da experiência política, na Câmara dos Deputados.

Churchill dizia que o político deve ser capaz de prever o que vai passar-se amanhã, o que vai passar-se mês que vem, e o que vai passar-se no próximo ano, com uma condição: a de saber explicar depois por que nada do que ele previu aconteceu.

Convosco ocorreu exatamente o contrário. Em cada governante deve coexistir um bom profeta. Esse profeta há de anunciar o futuro, para saber cumprir esse futuro na hora adequada. E foi exatamente o que ocorreu convosco. Tudo quanto anunciastes, ao predizer um Maranhão novo, despertado nas fontes de sua riqueza, com uma perspectiva otimista para o seu futuro, realmente aconteceu. O homem de ação, em vossa personalidade, suplantou o poeta. Este sonhou para que o político realizasse o seu sonho.
José Bonifácio, O Moço – que também foi político – imaginava o poeta como um cisne em lago de ouro nas águas a boiar.

Em vez de ficar boiando nas águas maranhenses, como o cisne do símilo de José Bonifácio, preferistes erguer uma ponte sobre as águas do Rio Anil, e com isto abristes caminho à expansão natural de São Luís, criando condições objetivas para a preservação da velha São Luís dos sobrados de azulejos, das sacadas de ferro e das calçadas de cantaria.

Ano passado, quando eu supunha que éreis todo da vida política, sem tempo e espaço para as vossas letras, eis que retornastes à Poesia, com os vossos Os Maribondos de Fogo, a anunciar-nos, nesta “Homilia do Juízo Final”:

Tenho um encontro com Deus:
– José!
Onde estão as tuas mãos que eu enchi de
                                            [estrelas?
– Estão aqui, neste balde de juçaras
                                   [e sofrimentos.

Em 1969, o editor José de Barros Martins, conhecendo o sentimento de afeição que me prende à vossa pessoa, enviou-me para Paris, onde eu então residia, os originais de vosso livro de contos maranhenses, Norte das Águas, convidando-me a escrever sobre as vossas narrativas de inspiração regional uma nota introdutória.

Não me espantei, como o Presidente Austregésilo de Athayde, ao ver o Governador José Sarney publicar um livro de contos. Eu sabia que o escritor não se dissociara do governante ao subir os degraus da escadaria de mármore do Palácio dos Leões. E também sabia que o povo maranhense olhava com bons olhos esse ato público de fidelidade literária.

No alvoroço do novo livro, tínheis me telegrafado, com a notícia alvissareira. E logo vos escrevi, comungando de vosso entusiasmo:

Teu telegrama, com a notícia do novo livro, deu-me a alegria condizente com um sol de primavera neste inverno de Paris. De repente, um céu azul, sol nas calçadas e nas árvores, os capotões pendurados no braço – e o teu telegrama. Parabéns ao Maranhão, em primeiro lugar; depois, ao Brasil.

Nas palavras de caloroso aplauso que mandei ao vosso editor, tive ensejo de acentuar, a propósito dos dois lados de vossa personalidade: “José Sarney, ao mesmo tempo que faz política, faz Literatura, e com esta característica: como político, não é literato; como homem de letras, não é político”. E acrescentei, linhas adiante, para melhor objetividade de meu pensamento:

Mas a verdade também é que, se não tivesse feito política, percorrendo o Maranhão em todos os sentidos, para conhecer-lhe os problemas e ouvir o seu povo, o escritor José Sarney não teria acumulado a soma de experiências e de conhecimentos que se encontram hoje nos seus contos. É que, nesse mestre de arte de contar histórias, o saber maranhense é a própria substância novelesca. Ele está para o Maranhão como Simões Lopes Neto está para o Rio Grande do Sul, Afonso Arinos para Minas Gerais, ou Valdomiro Silveira para São Paulo: a profunda identificação do escritor com a sua terra e a sua gente deu-lhe a matéria e a forma de criação literária.

Agora mesmo, para escrever este discurso, andei a reler o Norte das Águas e quero dizer-vos, meu caro confrade, que nele tendes aquele livro para o qual efetivamente nascestes. Dizia André Maurois, espantado com a própria bagagem literária, que a viagem para a posteridade não se há de fazê-la com excesso de peso. De tudo quanto escrevemos, sobrepairam uns tantos livros, ou apenas um único livro, que acompanha o nosso nome pelo tempo adiante. Já tendes assim o vosso livro, com o qual, à maneira de Rousseau com as suas Confissões, podereis comparecer diante de Deus, ao soarem as trombetas do Juízo Final.

Ouço Mestre Aurélio Buarque de Holanda, que leu vosso livro com soberba atenção, dele retirou palavras e frases, para abonar vários verbetes de seu Novo Dicionário da Língua Portuguesa com exemplos recolhidos no Norte das Águas. Que mais era preciso para a vossa consagração?

Ninguém vos acusará de excesso de peso à hora da viagem para posteridade. E é essa uma característica de vossos antecessores nesta Academia: todos eles, na Cadeira 38, se contiveram na bibliografia comedida. Nenhum se derramou por muitos volumes, no plano literário. E nessa bibliografia reduzida, um ou dois livros em destaque, sobrelevando aos demais.

O fundador da Cadeira, Graça Aranha, teve mesmo esta originalidade na crônica das Academias: integrou o corpo de fundadores de nossa Instituição, em 1897, sem ter livro publicado. Canaã, seu primeiro livro, só viria a sair no século seguinte, em 1902. Podemos dizer, por isso mesmo, que o grande escritor entrou na Academia a crédito – para depois saldar a dívida tinindo sobre a mesa as suas moedas de ouro.

Já se observou, a propósito da poesia de Rilke, que seus versos líricos, embora tivessem apenas o som de uma folha caindo, comunicavam as suas vibrações às almas mais afastadas.

Na verdade essa comunicação não há de ser privativa da poesia lírica ou do verso de Rilke. É consubstancial à obra de arte literária, todas as vezes que esta traz em si a marca do texto plenamente realizado.

Quem vos ouviu na tribuna política, veemente, convicto, dificilmente vos reconhecerá na vossa prosa literária, de que deu aqui apenas um curto exemplo, extraído de uma de vossas mais belas histórias, “Merícia do Riacho Bem-Querer”:

As Cajazeiras, fazenda antiga e longe: sessenta léguas no rumo do Maranhão das outras bandas, este que vai enviesado na direção do Gurupi. O casarão grande e espichado como jabota, com seu varandão de abas caídas, telhas pretas e pesadas. Ao lado, a loja de secos e molhados, miudezas e fazendas. Cavalos na porta, tropeiros, tropas, burros, jumentos, e os homens no meio. Cargas de babaçu e de arroz. Pesa e faz a conta, avia e volta. O estalo dos relhos no lombo dos animais.

É um quadro apenas. Mas só ele nos basta para dar a imagem nítida do escritor que chega hoje a esta Casa. Não se lhe pode retirar ou acrescer uma só palavra. André Gide confessava ter querido fazer de sua frase um instrumento tão sensível que a simples alteração de uma vírgula seria suficiente para deteriorar-lhe a harmonia. No vosso texto em prosa, Sr. José Sarney, não direi que houvésseis chegado a tais requintes de premeditação e polimento estilístico. Não. Pertencia a outra família de escritores. Àquela que improvisa o seu texto, cedendo à inspiração momentânea. A elaboração da página se faz nos intervalos da escrita, por um processo gradativo e misterioso, que de súbito se abre à flor da terra, com a beleza nova de suas cores imprevistas.

Não quero concluir sem uma alusão à dedicatória do Norte das Águas. Dedicastes o vosso grande livro a Nazaré e a Odylo Costa, filho – “da família dos Boasgentes, consanguíneos dos Bonsdeuses!” Ah! A alegria que teria Odylo, na apoteose desta noite, que também seria dele, como partícipe de vossa vitória. Imagino essa alegria pela que eu próprio experimento, ao vos saudar em nome de nossos confrades.
 
Quando vos candidatastes à Academia, visastes à sucessão de um grande escritor, que foi também um grande político, mas na verdade tínheis também outra intenção – a de fazer voltar às glórias de nossa terra a Cadeira aqui fundada por nosso conterrâneo Graça Aranha e que hoje vos pertence, com o aplauso e o júbilo de todos nós.
 
Lembra-nos Machado de Assis, no discurso proferido na cerimônia de lançamento da pedra fundamental da estátua de José de Alencar, no Rio de Janeiro, que o grande escritor, ao desenganar-se dos homens e das coisas, nos reveses da luta política, “volveu de todo às suas queridas Letras”. E adiantava mais o mestre de Dom Casmurro, com a sua fina experiência da vida: “As Letras são boas amigas; não lhe fizeram esquecer inteiramente as amarguras, é certo; senti-lhe mais de uma vez a alma enojada e abatida. Mas a Arte, que é a liberdade, era a força medicatriz de seu espírito”.

Vindes aqui como escritor, sem vos despojardes de vossa condição política. Já provastes, no vosso primoroso discurso, que uma se harmoniza com a outra, na personalidade de tantos de nossos confrades, a começar por Machado de Assis. Rui, o grande Rui, é o mais alto exemplo dessa concordância perfeita. E o atual presidente do Senado, nosso companheiro Luís Viana Filho, está ali à mão, como o exemplo acadêmico ao alcance de vossos olhos, sempre que vos sentais na vossa cadeira parlamentar como representante do Maranhão.

Volto a dizer-vos que sois legitimamente um escritor, Sr. José Sarney, e dos mais altos de vossa geração e de nosso País. O Maranhão se orgulha de vos ter entre os seus filhos mais ilustres, honrando as tradições intelectuais que nos vêm de um João Lisboa, de um Graça Aranha. Bernanos reconhecia, ainda moço, que é preciso permanecer fiel às grandes paixões da adolescência ou desaparecer antes delas. Permanecestes fiel às vossas Letras, que vos seduziram na juventude. Nada mais natural do que o lugar definitivo que tendes agora nesta Academia. E só eu sei a emoção com que vos vejo sentado nessa Poltrona, com o vosso chapéu de plumas, a vossa espada (pernambucana) e o vosso colar acadêmico, a reluzir, com tanto júbilo e em tão bela noite de glórias, os doirados de vosso fardão.

6/11/1980.